19 junho 2010

Dos ofícios, ofídicos e seus males

− Profissão?
− Escritor.
A mulher, ao lado, resolve agir. Até então não havia dito nada, enquanto ele respondia ao check-in do hotelzinho de beira de estrada:
− Como assim, “escritor”?
− Ué, escritor, aquele que escreve.
− E de onde você tira que é escritor, imprestável?
− Bom, eu escrevo, daí sou escritor.
− Não, eu tô dizendo de quem escreve para valer!
− Mas eu “escrevo para valer”. Já até publiquei livro, fiz lançamento...
− Mas isso vale para quem vive disso, seu burro! Quem ganha dinheiro.
− Filha, a grana para esta viagem tu acha que saiu de onde? Do coelhinho da páscoa?
Sem graça com o desenrolar cotidiano, caseiro, conjugal e caótico à sua frente, o atendente arrisca:
− Desculpe senhor, é que...
− E você, cale-se! – a mulher lançou-lhe o famoso olhar de caninana preparando o bote. Retomou a carga dando as costas para o pobre − Estou falando de dinheiro de verdade, para comprar casa, bancar feira do mês, pagar energia, telefone, mandar os filhos estudarem na Suíça, tirar carro do ano, férias na Europa...
− Uai, mas nós estamos de férias!
− Eu tô falando de férias na Europa, não em Cachimbó do Aterro, energúmeno! Além do que, você “vive de férias” com esse “negócio de livro”...
− Querida, veja bem...
− Veja bem é o escambáu! Não me venha com essa retórica de “comunidade de escritor”! − Apertava-o devagarinho, tal sucuri faminta a bezerro gordo. Suspirou, olhou ao céu, agradeceu a providência divina pela paciência. Se a substituísse pela força, já era.
− Amor da minha vida, não se constrói uma carreira literária do dia para noite. Tudo tem um caminho a ser seguido, entende?
− Eu entendo é que esse parangolé aí não dá camisa.
− Benzinho, tudo tem seu tempo.
− Seu tempo nada! Tinha mais é que arranjar um trabalho de verdade, um emprego de salário-mês e aí sim, usar do tempo livre para fazer essas coisinhas.
− Bom, aí seria um hobby, não uma profissão.
− E quem disse que isso é profissão? Ta maluco? Profissão de verdade é aquela com diploma, certificado. È médico, engenheiro, advogado.
− Meu bem, é um tipo diferente de profissional, mas é uma ocupação válida sim. Não sai das faculdades em “produção de linha” como os outros, mas um escritor, basicamente, se cria. Tem que ler muito, decifrar os códigos, estruturar um estilo, se apoderar das letras e construir mundos. Enquanto se formam milhares de advogados e médicos por ano, dentro dos parâmetros estipulados, um escritor tem que ser lapidado, exercitado, tarimbado, entende? É sim, uma profissão, sendo que até é reconhecida pelo Ministério do Trabalho. Número 2615 do Código Brasileiro de Ocupação (do 05 ao 30): Autor-roteirista, crítico, escritor de ficção, escritor de não ficção, poeta, redator de textos técnicos...
− Isso é desculpa de quem não quer trabalhar. Vai me dizer que você faz isso tudo aí.
− Não, querida. Sou um escritor de ficção, que pode ser contista, cronista de ficção, dramaturgo, ensaísta de ficção, escritor de cordel, de folhetim, estórias em quadrinho, novela de rádio, de televisão, obras educativas de ficção, fabulista, folclorista de ficção, novelista (escritor), prosador, romancista... Bom, isso é quando eu to sóbrio, porque quando tomo umas, cometo uns poemas, prá lá de etílicos.
− To sabendo, isso é desculpa sua para não fazer nada e ainda encher a cara.
− Fazer o quê, se o “desregramento dos sentidos é a melhor via para o desconhecido”, como diria Rimbaud, o doce maldito...
− Quem é esse tal de Rambo? É outro desses imprestáveis que andam contigo nos botecos? Deve ser né, porque até você xinga o cara de “maldito”!
− Bom, é que... De certo modo... Ah, deixa prá lá.
− Ta vendo? Falo sempre que esse negócio de escritor é fachada para ficar de pernas por ar!
− Mas querida, se eu não investir na carreira, dedicar meu tempo, como posso fazer algo que valha à pena? Como posso ser sincero com minhas escritas se não as levo a sério? Se não aplico meus esforços para estruturar minha obra, fazer pesquisas, estudar outras vertentes da escrita, aprimorar minha técnica, enfim, fazer algo que seja ao mesmo tempo instrutivo, literário, divertido, questionador... Em um país como o nosso, que tudo o que se faz pela cultura ainda é pouco, nós, os artistas, temos que ter o triplo de esforços que os outros segmentos. Temos que nos lançar de cabeça, dar a cara à tapa, sofrer privações, escutar provocações, para tentar alcançar um lugarzinho ao sol que seja...
O atendente, não percebendo o momento do discurso, ainda arrisca:
− Senhor, eu preciso que...
− Calma aí, já chego em você. Onde estariam os grandes nomes da música brasileira se, ao primeiro sinal de contratempo tivessem jogado tudo para o ar e desistido? Se o Joaquim Maria não desse voz ao Machado de Assis? Se o Antônio Renato, advogado, não tivesse dado vida ao Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbbo, deixasse o Ceará e ganhasse o mundo? Que fim teria o Angenor não se transvertesse em Cartola? O que seria de Pelé se tivesse desistido da bola?
− Isso não é para você. Não tem o talento necessário – Jurou ter visto a peçonha dela escorrendo no canto da boca. E um guizo simbilando no ar, cortando os ouvidos, lenta e mecanicamente, um momento hitchcockiano de tensão tomando corpo. Ainda tentou devolver um sorriso.
− Talvez você esteja certa. Mas eu tenho ao menos que tentar. Fazer algo de belo, ao invés de só correr atrás do vil metal. Criar, produzir, interagir.
− Isso não dá camisa. E nunca vai mudar.
− “A gente muda o mundo na mudança da mente. E quando a mente muda, a gente anda pra frente, e quando a gente manda ninguém manda na gente.”
− Neste mundo há um mar de pessoas e você é somente uma gota no oceano.
− Pode até ser, mas sou a gota revoltada...
− Você já teve uma ocupação de gente na vida, não?
− Claro...
− Quer saber, por mim pode ir à merda com essa palhaçada de escritor, artista, o que for! Eu é que não vou ficar presa a um sem futuro como você − rodopiou nos calcanhares e serpenteava porta afora quando estacou de repente, decidida a dar um fim tanto no assunto quanto no relacionamento − Se fosse tão esperto quanto parece, deixava esse negócio de lado e voltava a fazer o que fazia antes. Afinal, o que você fazia antes, seu porcaria?
O homem, honrando as calças e as palavras, abaixou-se incontinenti, abriu a mala, sacou algo de lá, apontou para a cara da cara metade e disparou. O verbo e a bala, duas vezes. Ficou olhando para a ficha, enquanto o recepcionista marmóreo do outro lado do balcão pedia aos céus que o chão se abrisse e o levasse para longe dali. O homem tomou da caneta e reformou a ocupação.
− Profissão, matador de aluguel – virou-se para o rapaz, explicativo − Pronto, agora eu quero ver alguém reclama, né? Eu mato a cobra e mostro o 38...

08 maio 2010

O Desafio do Galopeiro bêbado da beira do rio cantador

O espécie humana encontrou nas artes um dos catalisadores para exportar suas emoções e fazer florescer algo de tocante e sincero. O nome “Arte” vem do latim Ars, que significa técnica ou habilidade. Pela própria definição do nome percebe-se que não é tão simples quanto parece ser.
Era nisso que pensava eu, vivendo a tarde modorrenta e naquela seca de dar nó em pingo de pinga. Pensei em fazer algo de útil, tipo ajudar a ajeitar as coisas no mundo ou então lutar em prol de algo nobre e valioso. Algo que inspirasse as próximas gerações e fizesse com que a vida neste planeta tivesse verdadeiro sentido, levasse o nome do homem até a vigésima potência estelar ou marcasse a passagem humana na Terra de alguma forma. Mas essa vontade passou rápido e, como de costume, decidi ir para o Bar. “Uma cerveja antes do almoço é muito bom, prá ficar pensando melhor”, mas uma, três ou vinte depois do jantar é melhor ainda. A matemática nunca é uma ciência exata quando se trata de biritar.
Adentrei o BDE de forma irresponsavelmente incauta (é sempre bom estar com as orelhas em pé, vai que ta rolando um barraco ou outro?), quando dei de cara com um enorme ringue, daquele tipo mezzo Caesar´s Palace, mezzo Academia do Maguila. Reconheci alguns dos presentes, mas havia alguns rostos que, apesar de perceber ser a primeira vez que os via ali, tinham um quê estranho de conhecidos de muito tempo.
− Eita ferro. Será que a pancadaria agora vai ser institucionalizada?
− É o “Desafio do Galopeiro bêbado da beira do rio cantador” – Um zumbi de dois metros e meio (talvez três, medir os outros depois de tomar umas e outras não é um dos meus fortes), explicava o que acontecia.
− Mas, o que é isso?
− Bom, desafio porque alguém ta desafiando alguém. Óbvio. Galopeiro porque vai ter que galopar em alguma coisa, nem que seja na mesa. Bêbado porque tem que ir bebendo algo. A beira do rio cantador é que não sei bem para o que serve... Mas deixa o nome mais chique, não?
− É, pode ser.
Ajudou-me a levantar e nem bem estava pronto, me empurrou ringue adentro:
− Vai lá, a coisa é bem simples.
− Mas, mas o que eu faço?
− Sabe decassílabo, sáfico, gaita galega?
− Bom, conheço a Ritinha, que é uma galega das coxas grossas que...
− Então cala a boca e vai de prosa mesmo.
Olhei para o outro corner, o cara fazia uma cara estranha, com um protetor de mandíbula preto, daquele do Ivan Drago no Rocky IV, puro pesadelo, enquanto rosnava umas redondilhas com extrema maestria. Lembrei do que disse o Scliar: “Nunca cometi um poema na vida”. Merda... Eu já cometi alguns. Mas nada assim, metrificado, com swing e pendulo. Como enfrentar esses pesos pesados do verso? Tentei pensar em um dos grandes versadores da língua pátria, tipo faixa preta 50º Dan. Só saiu um e era gringo. Fernando Pessoa: “Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado / Para fora da possibilidade do soco”. Poema em linha reta, diretamente no nariz. Isso vai doer e não vai ser pouco...
Havia outro cabeludo no ringue, de costas. Uma espiada e vi a fuça do fulano. Olha lá, se não era o velho Dickinson:
− E aí, Bruce, que ta fazendo aqui?
− Tomando chá das cinco, palerma. Não vê que sou o juiz dessa porra?
− Mas peraí. Essa parada não é uma disputa poética?
− Sou músico. Poesia e música tem tudo a ver, “bloody bastard”!
O português do gringo me deixou sem palavras. O gongo soou e o aedo do outro lado lançou-se intempestivamente ao ataque.
Versei de leve, tomei um jab. Arrisquei começar um proseado, veio de lá um potente cruzado. Se pega, já era. Pensei em voltar pro rancho, pra não levar um gancho, mas ainda não tinha tomado nem dois goles. Nem três golpes...
Comecei a ganhar tempo, tentando salvar o que sabia de poesia da época da faculdade. Mas o catzo da coisa é que enquanto tava rolando as aulas de escansão e cositas más, aproveitei o tempo no Bar da Tia, praticando Sinuca I e II, além de halterocopismo e arremesso de guimba. É, eu to frito, pensei. Mas me ocorreu uma parada: os primeiros poetas recitavam os feitos de deuses e heróis. Daí que eram estórias contadas de maneira versada, mas estórias, mesmo assim. Isso quer dizer que tinha um quê de prosa. Melhor dar um jeito de enrolar e deixar o relógio para rodar. Começava a fazer o jogo de pernas quando alguém do meu corner gritou:
− Cuidado com o hexâmetro espondaico e o quinto pé espondeu!
Dei uma olhada de soslaio e vi que tinha uns caras tentando me dar umas dicas, cada um com um jeito mais diferente que o outro. Bailei para cá e para lá, escapei de vários tercetos, evitei uns quartetos e por fim o barulho metálico me colocou à salvo do primeiro round. Nem bem assentei e me vi cercado por três caras. O primeiro, mais atirado, foi logo falando, enquanto me passava a toalha:
“Usted tiene” que tentar acertá-lo. É “su” única chance.
− Aí, tua fuça não me é estranha...
− García Lorca, à “su dispor”. Os outros “son” monsieur Mallarmé e mister T.S. Elliot. − Três bambas, primeira categoria, pensei.
− Mas a parada é que eu não sei versar desse jeito.
“What a fuck”?
− Traduz, doutor.
− “Oura”, “Aprendemos o que é poesia lendo poesia”!
− Tá, eu concordo, mas é que...
O “boing” fez com que fosse lançado de novo no centro do ringue. E dá-lhe correr de martelos heróicos e da métrica clássica. Esquivar e esquivar, eis a única saída. O tempo, ainda bem, parecia passar bem rápido. Mas quando a luva passa rente ao nariz, tudo tem um aspecto meio câmera lenta. Voei para o corner de novo.
− O que você está fazendo?
− Sobrevivendo, chefia.
“But this is” um absurdo!
− É que sou alérgico à pancada, doutor.
Outro “boing” e olha eu de volta. Em várias voltas, devo admitir. Não parei um só momento. Aliás, até que parei, quando o vocalista do Iron, quer dizer, o juiz, me deu um puxão de orelha:
“Yeahhh”, falta combatividade. Menos um ponto.
− Melhor um ponto a menos no placar que dois a mais na cara.
What?
− Deixa prá lá...
Havia sobrevivido até o oitavo round. Como tudo acabaria no décimo, já estava quase lá.
− Porque você “non” acerta ele?
− Falta de molejo poético, saca?
− Veja, “enfant”. Muita gente já tentou definir poesia. Acredito que “ a poesia se faz com palavras, e não com idéias”.
“Todas as coisas tem o seu mistério, e a poesia é o mistério que todas as coisas tem”. − Lorca estava extremamente exaltado. Por fim Mallarmé retornou, ofídico:
− Acabe com “la resistance” de seu “adversarie” acertando umas tônicas bem no “fígadô” dele – protestei no ato:
− Queisso rapaz. Sei que é uma luta, mas é na brinca. Sou contra esse negócio de acertar a zona hepática. Como bom biritum, sei o quanto isso dói.
“Oui”, você é quem sabe, “non”? Mas lembre-se daquele ditado sobre valer tudo no amor e na “guerre”.
Aquilo me deixou bem bolado. Até agora estava no lucro, a sorte do meu lado e os reflexos apurados. Mas as goladas de cerveja que tomava à cada intervalo estavam começando a surtir efeito: meus reflexos com certeza não agüentaria muito mais. Eu seria atingido, uma hora ou outra. Era questão de tempo. Foi o tempo do gongo soar de novo. Parti para o ataque, desta vez. Comecei soltando uma lorotinha básica e emendei um direto:
−Aê, já ouviu falar do “verso catatônico”?
−Cuma?!
O verbo entrou direitinho, passou pela porta e a fresta, entrou como quem acaba com festa, entre a beirada da sobrancelha e o meio da testa. Foi pá e bola. “Ta lá um corpo estendido no chão...” Ia virar só comemoração quando o juiz (sempre ele), gritou:
− Golpe baixo! Utilizou-se de um verso heterométrico! Metrificou, mas com grande variação!
Perdi mais um ponto e nem me importei. O importante é que não tinha levado na fuça. Deram um tempo para o outro se ajeitar, fiquei ali, na expectativa, entre o calor da glória e a frieza da vida.
O gongo soou mais uma vez e lá fomos, os dois, arremessados um contra o outro, a cento e sessenta e quatro sílabas por hora. Choque frontal, colisão de carrilhões, tragédia de trem-bala: o impacto foi sentido à mesas de distância. Vôo solene, aterrissagem forçada.
Mas o que ninguém esperava, aconteceu. Knockout Duplo: quando dois pugilistas golpeiam-se simultaneamente. Contagem aberta para ambos os lados, quem se levantasse seria considerado vencedor. A cabeça ainda balançava muito, mas eu comecei a reerguer-me. Do lado adversário veio o sussurro:
− Se ficar no chão, pago a cervejada no botequim.
− Ok, mas com uma porção de salaminho também?
− Meia porção. Mas pode pedir uma dose de pinga.
− Duas doses. E com limão!
− Negócio fechado.
Estiquei-me lá e fiquei vendo o juiz apontar o fim da contagem, a luta foi considerada nula. Aproveitei para pegar a mesa de sempre, no canto do boteco, ao lado do balcão, meio na penumbra. Os três do corner vieram beber comigo, assim como o adversário ferido. Mas o organizador da parada, o zumbi de dois metros e meio, passou jurando:
− Isso não vai ficar assim. Te pego lá fora... − afastou solene, com domínio dos pés, direito e esquerdo.
“Usted non tienes” medo?
− Agora não – apontei para a prateleira de bebidas – Enquanto aquilo estiver estocado, não pretendo sair tão cedo.
− E quando acabar tudo?
Puxei minha Remington 12 para o lado e disparei:
− Aí eu dou um jeito...

10 abril 2010

Salve Geral

Greve Geral



Planeta: Terra. Cidade: Goiânia. Como em todas as metrópoles deste planeta, Goiânia se acha hoje em desvantagem em sua luta contra um dos maiores inimigos do homem: o pentelho. E, apesar dos esforços das autoridades de todo o mundo, pode chegar um dia em que a terra, o ar e as águas estejam infestadas das mais diversas formas de pentelhos: os panfletários de diversas siglas, os reclamantes do meio ambiente,os entregadores de panfletos, movimentos de diversas formas e modelos ou os chatos que são chatos só pelo prazer que isso lhes causa. Com ou sem uma causa válida. Quem poderá intervir? Spectreman?(1)

Segunda feira, passava da uma da tarde e eu sentado no boteco ao lado do Centro Administrativo. Até aí nada de anormal: tava rebatendo uma ressaca monstra. Ficava ali vendo o rodízio de passeatas reclamando de uma ou outra coisa: primeiro havia vindo os atendentes de cartório, depois os bancários e logo em seguida uma grande passeata de professores da rede estadual; estão sempre entre os mais pendurados. Entre uma greve e outra, aparecia um movimento disto ou daquilo: sem-terra, sem-moradia, sem camisa, sem calça, sem vergonha, sem isso, sem aquilo. Eu devia estar com uma cara pra lá de gozada, pois volta e meia alguém mandava uma frase de ordem para o meu lado:
− Você aí parado, também é explorado!
Errado. Eu aqui parado, tô ficando é chapado, pensei.
− O povo, unido, jamais será vencido!
Ta, diga isso para as grandes corporações e os grupos bancários... − Caminhando e cantando e seguindo a canção...
Sempre tem um mané para tirar a porra dessa música. Será que não cansam?
Foi então que reconheci uma voz no meio da multidão:
− Juliano Werneck, ainda entregue aos prazeres da Baco?
− Poisé, Professor Birowski. Não dizem que a vida é feita de momentos? Os meus são quase todos aqui, no meio das garrafas.
− Junte-se a nós e exerça seu direito de cidadão, proteste!
− Vão abaixar o preço da breja?
− Não que eu saiba; a coisa aqui é mais pela política.
− Entonces, tô fora.
− “O pior de todos os analfabetos é o analfabeto político”.
Ai, meu saco: Brecht(2) debaixo de uma lua dessas é de estourar as bolas...
− E a pior de todas as sedes é a etílica, professor. Deixa a reclamança de lado e vambora chapar o côco!
− Você, como um representante da classe literária tinha que se engajar mais, defender alguma causa, algum movimento.
− Sou do Movimento dos Sem Movimento. Qualquer lugar para encostar e tomar uma é meu reino; toda mesa de bar é meu campo e o balcão é o melhor exemplo da socialização da humanidade: ali estão lado a lado a direita e a esquerda, o rico e o pobre, o empregado e o patrão e por aí vai...

Fechei os olhos por um instante, a tarde estava estupidamente brilhante naquele momento. Clima perfeito para uma pestana, pensei.
Foi o bastante para um grupo de uns quinze ou vinte manifestantes abordarem o botequim:
− Nós somos do Movimento dos Sem Cerveja. Vamos desapropriar toda essa bebida pequeno-burguesa!
Meu apitinho cívico tocou na hora: na gelada ninguém bota a mão! Nada contra dividir o pão, mas daí para bicar da minha garrafa, há uma enorme distância.
− E quem disse que a cerveja é uma bebida de elite? – protestei, mas intimamente meio que concordando com os caras: com o preço que a loirinha ta, mais fácil e barato tomar pinga ou catuaba, as campeãs das biroscas de subúrbio. Mas tinha que defender meu suco de cevada. Aprontei o gogó e comecei a aula de história:
− Tipo uns 10 mil anos, conforme os cervejeiros mais antigos e ainda não afetados pela cirrose, os homens descobriram, meio na cagada, meio na preguiça, que aquela parada de deixar um monte de cereais jogados em um lugar qualquer acabava fermentando e virando uma pasta que dava para fazer uma espécie esquisita de bolo. Vai daí que uns caras de um lugar das antigas chamado Mesopotâmia, inventaram de tomar uns goles da garapa que sobrava desses bolos, estando assim entre os primeiros birituns da história. A parada deu uma luz e os fulanos ficaram com aquela cara de alegres, gente boa, achando tudo uma maravilha. Pronto, tava inventada a cerva, mesmo bem diferente da que a gente toma hoje... - Neste momento, o lugar foi cercado pela tropa de choque, doidinha para valer a lei do cassetete e descer a borracha no lombo dos mais inflamados. Levantei meu caneco com a autoridade que me era cabida, de cachaceiro mais respeitado do boteco e pedi para eles aguardarem o final de meu pronunciamento. E voltei à carga:
− Daí, uns tempos depois (não me pergunte quanto, nem os caras deviam saber: estavam todos chapados), os egípcios chegaram quebrando tudo na rave mesopotâmica e acabaram levando com eles o segredo mágico da fabricação da birita. Depois de muito porre nas pirâmides, a coisa estendeu-se até os romanos darem as caras (e as espadas). Como eles tinham um pezinho em cada canto, acabaram levando o néctar para todos os lados, seja a Britânia (para posterior alegria dos futuros ingleses), Gália (França) e outras paragens. Dizem inclusive, que César, o cara mesmo, era chegado numa caneca da fermentada (na época ainda não deviam cognominá-la de “loira” ou “gelada”). O nome cerveja acabou sendo uma homenagem à deusa Ceres, o que demonstra que os homens quando bebem sempre estão com uma mulher na cabeça...
Quando baixaram as trevas da Idade Média, a fabricação da bebida acabou parando nos conventos, onde os monges, com tempo de sobra para fazer experimentos mil, vide Mendel e suas ervilhas (3), acabaram criando outros tipos da bebida com diferentes técnicas de fabricação. O que veio bem a calhar, pois com o crescimento dos conjuntos habitacionais, o povo precisava de uma atividade para extravasar os estressantes labores medievais, como o jugo e a servidão. Então, dá-lhes cerveja que a galera se acalma. Outra coisa bacana que esses caras fizeram, por terem o quase monopólio da escrita, foi deixar anotadas as técnicas de fabrico.
Daí surgiram os mestres cervejeiros, que antes eram aprendizes na arte de fabricar a bebida com próprios monges. Aderindo a moda dos artesãos dos burgos, começaram a produzir cerveja em estabelecimentos próprios, as tavernas. Tais lugares logo, logo acabaram virando points onde se discutia de tudo, menos religião e futebol: o primeiro porque podia acabar te levando para a fogueira, o segundo por não existir mesmo. Daí os caras falavam bastante, principalmente depois de umas e outras, de política. Isso fez com que as autoridades da época acabassem botando um olho nestes lugares. Foi quando surgiram os alcaguetes modernos, o popular dedo-duro.
Durante a Idade Moderna, quem vocês acham que estava em todas as mesas importantes da Revolução Francesa? Nota zero para quem pensou em champanhe ou brioche: o que pegava bem mesmo, independente se era entre girondinos ou jacobinos, era estar com uma baita caneca na mão. Para molhar a palavra e aqueles discursos intermináveis da liberte, egalité, fraternité (4) . Não existe nada mais fraterno que dividir uma cerveja com um irmão.
Com os adventos científicos da revolução industrial, o ramo cervejeiro não ficou de fora, o que transformou a breja no que ela é hoje, uma bebida de fácil acesso, popular e com milhões de admiradores espalhados pelos quatro cantos do mundo, a conhecida e admirada “loira gelada”. Ideal para todos os tipos de eventos: casamentos, batizados, aniversários e festas afins; churrascos de fim de semana, reuniões com teor político ou não – Pude notar então que o discurso já havia acalmado os ânimos de ambas as partes.
− Daí vos pergunto, meus caros, o que tem a ver o meu goró com o blá-blá-blá de vocês? Há algum dentre vós, seja militante ou polícia, que não tome uma cervejinha?
Os manifestantes entreolharam meio sem, os policiais balançando as cabeças, concordando: havia atingido à todos em um ponto fraco, do lado direito do corpo, entre o baço e o pâncreas: bem no fígado.
A manifestação, que havia parado para ouvir minhas sábias e ébrias palavras, explodiu em palmas. Havia pessoas chorando comovidas e abraços entre diferentes lados políticos: esquerdistas e direitistas de mãos dadas com o pessoal do centro e todos degustando um gole de cerveja.
Os canas gostaram tanto daquilo que me colocaram na chefia deles. Questão de tempo, já tava comandando a cidade. Daí para o governo do estado foi um pulo; a presidência foi um passo natural, dadas as circunstâncias: um brado percorreu o país de norte a sul, de leste a oeste: Manguaceiros, uni-vos! Fui entronado como governante enquanto os estoques de cerveja se mantivessem graúdos. Chamei o pessoal da Embav, da Choça-Cola, Cachincariol, além de todas as outras marcas e modelos de cerveja e firmei um contrato com eles para fornecimento eterno do néctar da cevada para cada cidadão; aqueles que não bebessem podiam repassar sua cota para o sortudo, quero dizer, parente mais próximo. Deste jeito meu governo tornou-se vitalício logo de cara...
Fiz um churrasco e chamei os amigos que tinha e não tinha. No meio da coisa, um dos políticos que lá estavam resolveu reclamar que faltava sal na carne. Fiquei tão puto que mandei prender o safado. Onde já se viu, o mocorongo ir numa boca livre e ficar reclamando do que ta ganhando de mão beijada? Meti o safado na grade. E depois dele foram os seus correligionários. E logo após os adversários. Mas o pior é que eu peguei gosto pela coisa. O tal de mandar prender os outros... Na outra semana já tinha metido em cana quase um terço da população; uns por reclamarem, outros por escutarem as reclamações e outros ainda por torcerem para o time errado: qualquer motivo era motivo para mandar para o xilindró... Os xadrezes acabaram todos lotados. Agora, além de arranjar mais espaço para os que tinham que entrar, teria também que triplicar a produção de cerveja para conter a demanda. Resolvi tudo com uma decisão radical: el paredón, lógico. Mandei juntar logo uma centena de políticos conhecidos, que era para ir quebrando o gelo e não ter reclamação: e lá alguém ia achar ruim de passar o cerol em vagabundo? O comandante começou a contagem e olhou para meu lado:
− Preparar, apontar... Err... Senhor, eu poderia dar uma sugestão?
− É para maximizar a produção de presunto e a desova de safado?
− Sim Senhor!
− Então manda bala. Quer dizer, pode falar.
− É o seguinte; com a quantidade de político ruim que a gente tem, fica uma grana meter uma azeitona em cada um. Daí que o senhor faria a maior economia se usasse um método diferente. E poderia investir a grana economizada na produção de mais cerveja, o que acha?
O cara estava estupidamente certo. Então, diretamente do Louvre, mandei vir uma das guilhotinas remanescentes da Revolução Francesa. Agora os caras iriam ter a honra de colocar seus pescoços em lugares já frequentados por outros mais famosos, como Robespierre, Danton e Marat (5) ... Não, peraí: foi uma dona peituda, ou melhor, com muito peito que jogou o cara para trás. Mas isso é outra estória. Eu só não sabia onde ela ia se encaixar. Aliás, algo ficava me perturbando já tinha um tempo e não sabia exatamente o quê. A não ser que tudo não passasse de...

− Seu Juliano, Seu Juliano! − acordei com o Etelvino, o garçom, sacudindo meu ombro − Vai mais uma cerveja?
Olhei para os lados, tinha cochilado em pleno botequim. Porra, apagar em mesa de boteco é o fim da picada. Consultei o relógio e vi que estava em cima da hora para pegar o banco ainda aberto. Disfarcei com um leve bocejo e mandei ver o resto do copo numa golada só.
− Passa a régua.
− Vai participar da passeata?
Balancei a cabeça devagar em negativa:
− Mexer com esse negócio de política nada; acabei de descobrir que sou um ditador em potencial – ao ver a cara redonda e curiosa do atendente, emendei: − Mas nem sei se isso é tão ruim assim no fim das contas. Vive La Bierre (6) !
E sai gingando com aquele andado de John Wayne(7) bêbado do cerrado.

(1) Adaptado da chamada inicial do seriado japonês Spectreman.
(2) Bertold Brecht ( 1898 – 1956) – dramaturgo e poeta alemão.
(3) Gregor Mendel (1822 – 1884) – Monge agostiniano, botânico e metereologista, considerado o pai da genética por suas experiências com cruzamento de tipos de ervilhas e outras plantas.

(4) Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Foi o lema da Revolução Francesa e também é da maçonaria.
(5) Personagens históricos da Revolução Francesa.
(6) Viva a cerveja.
(7) Fala sério: cê não sabe quem foi o cowboy-ator-cara-durão-da-silva?

11 março 2010

Lançamento do livro "Jantar às 11"




Poisé, eis aí a arte do lançamento, marcado para o dia 18 de março, coincidentemente, o dia em que também estarei lançando, com mais de 70 autores, pela Prefeitura de Goiânia, a coleção Verso e Prosa. Mas isso é uma outra estória, como também é outro livro. Corri tanto para fazer um lançamento que vai acabar de ter que fazer dois na mesma noite. Mas "c´est la vie" como dizem nos cafés...

A entrada é franca e tô convidado de norte a sul para o evento.

Tendo um tempinho, aparece por lá.

08 fevereiro 2010

O "Jantar" está servido...(Pré venda interativa)





Este é meu primeiro trabalho, primeiro a ser premiado e também publicado. São 17 contos espalhados em 112 páginas, gentilmente prefaciado pelo poeta e escritor Delermando Vieira, com comentários das escritoras Betty Vidigal (a Liz do BDE) e Augusta Faro, que foram de uma cortesia tamanha, que me faltam as palavras exatas para mensurar a gratidão que lhes devo.

A pré-venda será feita pela internet, pelo e-mail cmpneto@bol.com.br, onde responderei os pedidos do livro para qualquer canto do país (ou quiçá, fora dele). Quanto aos lançamenos físicos espero em breve estar promovendo e posteriormente noticiando os mesmos em diversas cidades, a começar pela minha querida e aconchegante Goiânia.