26 fevereiro 2007

Réquiem para um amigo (2)

Algumas horas depois, enquanto a carruagem sacolejava freneticamente em meio de uma chuva fina, dois emudecidos e embriagados oficiais (Rodolphe ficara na mansão, pois se recuperava de um ferimento antigo) encontravam-se a caminho do porto, onde haveriam de embarcar a Brigada reunida às pressas devido a deflagração de uma guerra já há muito esperada.
- Que achas – disse Junot, quebrando o longo silêncio – das futuras bodas da pequena Madeleine... Quem diria, ontem brincava com bonecas, hoje noiva!
Charles que encontrava-se às voltas com a abertura de uma das três garrafas de vinho que havia trago do banquete, resmungando a muito algo ininteligível, olhou somente de soslaio para o amigo, com aquele mesmo olhar que desferira após o brinde - Um janota... um almofadinha da cidade, um moleque... sua voz aumentava de intensidade pouco a pouco – Ademais ela ainda é uma criança, como podem deixá-la pensar em casar-se ? Loucos ! Isto é o que são ! – sua voz demonstrava uma tal emoção que o capitão nunca havia presenciado.
- Não meu amigo. Vejo somente que acabas de descobrir que as emoções também lhe têm em conta...
- O que está dizendo, homem ?
- Que, pelo visto, não se preocupa exatamente com o casamento pelo fato da idade da noiva, mas sim pela identidade do noivo.
- O que está insinuando, Louis ?
- Desculpe lhe abrir os olhos, mas acho que descobrimos agora que sempre estivera apaixonado e somente se deste conta disto hoje.
- Apaixonado, eu ? Pela irmãzinha ? Que idéia... – em seu rosto havia algo de escárnio, como se o outro houvesse contado uma anedota e ele se retorcesse em uma careta meio cômica, mas com algo de perturbador, e no seu íntimo, suas dúvidas foram desaparecendo como a névoa matutina ao raiar do sol. Estaria amando ? Sempre estivera em relações corriqueiras, passageiras como as estações, mas realmente nunca havia amado. Mas o que é o amor, afinal ? Será que talvez por não saber seu real significado não se dera conta ainda ? Teria sido tão idiota assim, se perdendo em rodeios e cavalheirismos inócuos, que não fizera a corte justamente àquela que agora era a senhora soberana de sua vontade?!
Estando perdido nestes pensamentos, ficara parado como uma estátua, garrafa semi-aberta na mão olhando para o nada. Coube a Junot tomá-la de suas mãos e terminar de abri-la:
- Um brinde à sua descoberta, mom ami, embora tardia... Mas não preocupe com o destino de M.lle. Madeleine. Como estamos indo para a guerra, talvez morramos antes da próxima semana... Sem haver ao menos preparado um terno decente para o casamento! - e explodiu em gargalhadas.

06 fevereiro 2007

Réquiem para um amigo

Primeira parte de um conto que a muito mora em um de minhas gavetas...

Desde os tempos do grande exército do Imperador, seus soldados granjearam a fama de grandes combatentes. Mesmo quando o general Oudinot foi derrotado por Garibaldi em Civitavecchia, estes militares ficaram conhecidos como os melhores do mundo. O comando, sob os auspícios do Imperador-general, era impecável. Entretanto, esta estória é uma das pequenas sobre as peças que moviam esta fabulosa máquina, os valores e as fraquezas deste exército, demonstradas não por grandes batalhas, ou atos heróicos, mas entre o relacionamento de três amigos chegados, que serviram durante este tempo.
Havia entre os corpos da Brigada, três oficiais que se conheciam deste o início de seus estudos militares: os capitães Saint-Viére e Junot, além do major De Vére. Eram grandes soldados, além de companheiros (sempre que as movimentações da tropa permitiam), inseparáveis. O encontrar desses camadas era, mesmo em tempo de guerra, o que mais os animava, nestes momentos entre eles a hierarquia desaparecia e punham-se a fazer piadas uns dos outros.
Rodolphe des Saint-Viére, era de uma conhecida família burguesa, muito próxima da realeza, que havia traçada seu caminho até ali de maneira mais satisfatória possível; somente era soldado pelas conveniências da época, como também movido pelo sentimento de aventura que abundava em sua alma; Louis Antoine Junot, apesar de dispor de uma alma de artista, sendo um misto de músico, desenhista e escultor, havendo inclusive emoldurado alguns anjos para o palácio, em um certo ano, era dado a arroubos de violência quando embriagado, o que fazia dele um barril de pólvora prestes a explodir a qualquer momento; mantinha-se deste modo entre a rigidez do exército e o amor nato às artes plásticas; já Charles de Neuff, sobrinho do Marqué de Vére (de quem herdou o título e nome ), fora criado praticamente dentro da caserna, visto que sua família deixara os bens ao encargo de seu irmão mais velho, que o enviou para a academia. Era, dos três, o melhor atirador, como também um péssimo escritor.
Como amigos tão chegados sempre se visitam uns aos outros, de Vére, sempre entediado com os outros brigadianos, assim que podia partia para propriedade Saint-Viére, onde além de encontrar seu companheiro de armas, também desafiava o velho Dr. Roland, pai de Rodolphe, para algumas partidas de xadrez, acompanhadas de discussões ora filosóficas, ora políticas. Gostava também de provocar a jovem Madeleine, a respeito de suas leituras sobre os romances de cavalaria dizendo que se algum daqueles campeões de papel, lhe desafiassem com suas espadas vingadoras, seriam prontamente abatidos com um só tiro. Nesta tarde em especial, após os triviais jogos e conversas animadas, foram todos convidados para aguardarem o jantar onde haveria uma grande surpresa. O major ainda tentou se esquivar premeditando que poderia ser algo que fosse particular sendo somente para os parentes, porém após os rogos dos presentes, em especial de Madeleine, concordou em ficar. No grande salão de jantar da antiga propriedade, um grande retângulo de aproximadamente 25 por 5 metros belamente decorado com tapeçarias retratando as proezas dos antepassados e iluminado por conjuntos de archotes dispostos nos cantos, seguros por estátuas de anjos cujas asas criavam algumas sombras engraçadas no teto, estavam agora todos devidamente acomodados ao redor de uma mesa proporcional em tamanho ao aposento, igualmente decoradas com vários tipos de pratos a serem servidos. De sua colocação, De Vére podia visualizar quase todos os convivas; Dr. Roland na posição de anfitrião, tendo a direita e esquerda seu casal de filhos, o obeso farmacêutico Chantecler, o Coronel Faby, do corpo de expedicionários, Monsieur Jaccard, o tabelião, juntamente com a esposa e o filho Pierre, além de alguns pacientes do velho cirurgião, que ele não conhecia bem. Pouco depois de soar o toque das oito, quando já começavam os ruídos dos pratos, sentiu uma mão pesando em seu ombro. Era Junot que acabara de chegar:
- Às armas, camaradas ! – gritou como se estivesse em batalha, assustando assim algumas das velhas senhoras – Chantecler lidera o ataque ! - o rosto do boticário corou instantaneamente – Por sorte, ainda não estraçalharam o pato, sussurrou para De Vére.
- Tem sorte de ainda haver bebida – este retrucou - olhe como Rodolphe já está alto... um pouco mais de vinho e poderemos chamar-lhe de Capitão Barril !
Assim entre risos e gargalhadas, o jantar seguiu, até que Dr. Saint-Viére levantou-se e tocou por três vezes sua taça com o garfo, solicitando a atenção dos presentes:
- Meus queridos – ele adorava usar esta expressão – tenho aqui perante mim grande parte de meus mais estimados amigos, além de minha família reunida, o que não é todo dia, visto que as necessidades da tropa consomem em muito do tempo de meu filho. Isto somente já valeria o brinde, entretanto há mais a lhes oferecer. Esta noite tenho o orgulho de comunicar que minha pequena rosa, Madeleine, foi pedida em casamento por Pierre Jaccard, o que enche meu coração de alegria.
Houve uma explosão de congratulações de quase todos os presentes. Digo quase todos por que Junot poderia jurar que viu vibrarem algumas faíscas no olhar fuzilante do major de Vére.