17 novembro 2007

DOS DIAS DEPOIS DO FIM

Veja,
o céu está novamente chorando.

A Beleza de luto,
caminha cabisbaixa
vestida de preto

Desfila de mãos dadas com a Dor:
é a festa da descrença
o banquete da revolta
o festim d´amargura
o velório do amor...

Vede, o sol não mais sorri
e as flores fogem fadigadas,
as crianças choram amedrontadas
com a chegada da noite eterna
que tomou o mundo inteiro
(noite da sentida ausência)

Madrugada do desespero

Não há mais amanhecer
chegada do dia
alvorecer
pois o mundo acabou ontem
e os que não tiveram a sorte de perecer
vagam com os olhos vazados
no meio dos escombros fumegantes
de seus arrasados lares

Tateiam o vácuo em vão
tentando encontrar uma face conhecida
mas só alcançam a máscara da miséria
(feita com a própria pele derretida)

Ragem os dentes e gritam
(os amaldiçoados riscados do Livro):
- Dor, ó dor, porque nos abandonastes
...............................................porque nos deixastes
................................................................................vivos?

12 novembro 2007

UM NOVO EU

Eu, que não sofria
de falta de ares
de arroubos e suspiros
de amores

Eu, duro como um prego
no madeiro
altaneiro
hoje cabisbaixo
sinto fraquejar as forças
mas ainda mantenho as poses

Quisera eu
como um pensamento
cruzar instantâneo
toda a extensão do firmamento
à fera que me rouba
os pensamentos

Monstro triste e trágico
batizo-o saudade
quisera eu...
quimera eu...

04 novembro 2007

Projeto de Samba

Projeto de Samba

Meu samba é pobre
Mas é limpinho
É cantado em desafino
É desalinho

Nasceu no asfalto
Mas subiu o morro
No cangote da morena
Que canta alto
Suspiro e sopro
Sufoco

Canta a morena
Cantinela
Ela canta o samba
O samba é dela

27 outubro 2007

ÚLTIMA MORADA

.
Meu esquife
é negro como a pata da noite
rasga a terra
como abre a pele das costas
o açoite
onde jorra o rubro vivo
da vida que se esvai
desce à última morada
casa funda que agora é cova
endereço fixo
enfim
do qual não irei me mudar
ali finalmente repousarei
mas ainda não sei
qual paz irei achar

Ao menos terei as flores
que não tive em vida.

26 outubro 2007

Convidado: Wilson R.

Quem somos?

Quem é você?
Quem é você, que desperta paixões tão violentas?
Quem é você, amada e odiada com tanta intensidade?
Quem é você que, com sua maravilhosa presença,
humilha aos seus pés as frágeis belezas da Terra?

Você é:

Perigoso objeto de desejo para corações incautos.
Delicadeza violenta para almas despreparadas
Dolorosa lembrança, viva em corações impiedosamente despedaçados.

Quem sou eu?

Quem sou eu, capaz de lutar mesmo quando
a batalha parece estar perdida, e ainda ter a certeza da vitória?
Quem sou eu, que desejo tanto que meu desejo contamina?
Quem sou eu, incapaz de lhe fazer outra coisa além de amor?

Eu sou:

Ferocidade tranqüila no encalço dos desejos
Ganância abençoada, que quer corpo, coração e alma.
Romântico descuidado, que não sabe nem pretende esconder sentimentos.

Você é a mulher que eu amo.
Eu sou o homem da sua vida.

Wilson R. é uma alma apaixonada que circula pelo BDE (Bar do Escritor). Autor de várias obras; esta pequena jóia encontra-se em S.O.S. Redação e Expressão Vol. 5
Agradeço a gentileza do mesmo em autorizar a postagem.

25 outubro 2007

Das eras, das feras e dos monstros interiores

Entre milênios espremidos em minutos
eras que se passaram em horas
no espaço imutável de um segundo
guardei aquele olhar dentro do meu
aprisionei-o e o trouxe comigo;
às vezes minha cruz mais pesada
em outras meu único abrigo
das acusações que me faço
sem me defender;
não peço nunca clemência
nem estou disposto a oferecer.

Último voluntário da pátria
sigo esbarrando nos ombros
dos que não me vêem
que não sabem onde guardo
meus tesouros e escombros

Dou de beber aos filhotes
da minha loucura
crias gordas e sadias
rainhas, cadelas, vadias
percussoras da minha crucificação
diária
último pária
seguindo sozinho em busca do horizonte
bebo o fel da fonte
do amargo lembrar
do rememorar
auroras de perdidas cores
de vários festins
e difusos amores

Aos séculos e seus sagrados segredos
respondo que ainda persisto
e apesar das derrotas e dos meus medos
não acenderei a candeia que eliminará a escuridão
no meio das sombras danço
mas o coração não acalento:
eu o picotei em pequenos pedaços
e o cozinho em fogo lento.

24 outubro 2007

Força e Fraqueza ou poema 61

61

Deixem-me
passem a fila adiante
e sigam sem olhar para trás
ou sal se tornarão

Olho ao lado
todos de mãos dadas, pares
como não tenho ninguém a quem dar as mãos
ponho-as no bolso; tem lá o seu charme

Deixem-me
deixem-me ser omisso
ao menos uma vez
deixem-me ser fraco

Pois já estou cansado de ser forte
e num supremo momento de fraqueza
em que se precisa ser forte
nunca mais sofrerei de novo

P.S. Este é o poema nº 61 do livro ainda não publicado "99 poems to die"...

22 outubro 2007

Cancioneiro do meu vôo

Ela puxô meu coração pela goela
pegô nas mão e bejô
ele triste, mirrado e sozinho
desenganado de gostá
se esperançô

Ela ergueu ele pro ar
e assim lhe ordenô:
Volta agora, a voar!
criando asas com presteza
para o céu ele avuô

É tão bão voar de novo
depois de ter quedado do alto
se partido e morrido
de tê tanto sofrido
por amô...

Mais vale a esperança de um amô perdido
que a certeza de num sê querido
e por medo de tê o orguio ferido
fazê cara de ofendido
quando lhe perguntam se tá mal...

Bate asa e voa
que cair faz parte da vida...

16 outubro 2007

Fim de semana amoroso ou da efemeridade do eterno


Ela vivia entre cifras e números. Trainee de uma multinacional, MBA quase concluído, ótimas notas, curriculum perfeito; ele, entre palavras e estrofes. Poeta semi-profissional, escritor por opção, ex-executivo, ex-empresário, extenuado pela busca da carreira correta, alguns contos reconhecidos, alguns rabiscos elogiados.
Se conheceram em uma sexta-feira. ela animada com o começo do final de semana; ele, buscando beber de graça no coquetel da empresa dela. Alguns passos para o mesmo lado, a escolha da mesma bebida (sem gelo, por favor!), um olhar correspondido e uma avassaladora paixão nascendo; conversas até a madrugada sobre tudo o que cerca os antenados... Uma despedida na manhã, dois telefones trocados e um beijo para ser lembrado.
Saíram no sábado, conforme o combinado na sexta, ela mostrou a ele o prédio da Bolsa (ainda vou trabalhar ali!), ele profetizou que ainda lançaria alguma coisa no prédio do Masp (nem que fosse o próprio corpo, lá do alto...). Os beijos se tornaram mais ardentes e os olhares mais profundos; a lua na madrugada os encontrou se amando por entre sussurros e desejos, as primeiras promessas brotando.
No domingo acordaram abraçados, beijando-se sem se escovar, rindo-se das mesmas coisas, bebendo do mesmo copo, trocando apelidos e segredos, constatando na pele as marcas físicas de uma noite de amores... Constatação essa que reiniciou todo o fogo, todos os movimentos. No auge do calor, a bomba: prometeram-se mutuamente amor infinito por todos os séculos que ainda restassem, juraram que seus sentimentos estavam em sintonia para todo o sempre...
Na segunda ela saiu para trabalhar cedo, ele ficou deitado de cuecas... Ela ligou de tarde dizendo que estava tudo acabado: iria se transferir para Nova York com um dos filhos do presidente da empresa; ele suspirou aliviado: a mulher e os quatro filhos deveriam estar putos da vida com seu desaparecimento... Esvaziou o barzinho dela e se escafedeu para o subúrbio.

09 outubro 2007

Revertérium

Brinco de controlar
meus desencontros cotidianos
minha rotina é inédita
meu dia a dia é estréia
o viver é uma aventura
avant premiére diária
amanheço amando
almoço desenganos
deito e durmo desiludido

Amanhã é outro dia bem diferente
minha sina é reviravolta
não comando meu destino
coadjuvante no filme da própria vida
sigo de carona com o desconhecido

Amanhã é outro dia
outra vez

08 outubro 2007

O cão chupando manga


O que é estar bem? É olhar um pôr-do-sol de mãos dadas ou com elas nos bolsos caminhar pelo calçadão? É comprar um carro novo ou morrer de amores por aquele seu velho automóvel com muitas estórias? É sentir-se bem quisto, visto ou amado, ou então, suportar como ninguém mais a afasia e o descompasso do mundo ocidental, moderno, frio, descontrolado e desesperançado?

É ter coragem para enfrentar uma execução ou ser o carrasco ?

É ver o pálido setembro ruir ou o surgir de um outubro rubro e sem rumo?

O que é estar bem? O que é estar mal? O que é ser bom, ou ser mau? A verdade que machuca ou a mentira inofensiva?

Um brinde não alcóolico feito ao que há de real e sincero no mundo. A crença cega em algo que não mais se materializa. O choque dos cascos dos cavalos do destino golpeando febrilmente o corpo inerte que se estende na calçada de um bar de esquina, a morte e vida severina, não precisa de sertão. Já há mormaço demais, calores demais.

Tudo depende de qual lado da arma você está... Há a queda, a busca pelos motivos do tombo e a constatação que agora o mercúrio cromo de nada servirá como curativo, nem que algum esparadrapo possa conter o fluxo de vida que lentamente se esvai...

Apesar de tudo isso, as noites sempre se vão e sempre há de amanhecer. Talvez não com a mesma magia, mas amanhecerá com certeza. Mesmo que o dia seja chuvoso e frio.

Pensamentos esparsos de um dos meus personagens mais contraditórios

08 agosto 2007

DÉCADA

“Você pode enjaular um tigre ,mas jamais terá certeza que ele está domado.
Com os homens a coisa é mais fácil.”
C. Bukowski

Dez anos. Cento e vinte meses. Mais ou menos 3650 dias, pois o ano bissexto atrapalha esta conta e as próximas. Oitenta e seis mil e quatrocentas horas, trezentos e onze bilhões e quarenta mil segundos. Este era o tempo aproximado que havia ficado separado da minha vida anterior. De quem eu era e quem sou agora...
Shopping em dia de semana é para quem têm muito para gastar ou para quem trabalha para ganhar. Caminho no meio das lojas com minha mochila nas costas, cheia de livros, despenteado, deixo o cabelo livre cair no rosto, sem me importar com o efeito ou com o olhar preocupado de uns seguranças, interessado de algumas vendedoras. Vou para a praça de alimentação.
Comprei uma cerveja em lata para rebater a ressaca lazarenta que toma conta do corpo. Segunda à tarde e eu com ressaca. Nada de anormal nisso. Havia recebido o telefone de manhã, mas só comecei a ficar mal da ausência de álcool depois do almoço. Levei meus sobrinhos no colégio e pus-me a andar daqui para lá, resolvendo uma coisinha aqui e outra lá: depósito em banco, orçamento de editora, um taxa na prefeitura e depois vim parar aqui. Enquanto bebericava a latinha, saquei um livro de um velho safado* e o lia para ajudar a passar o tempo. Embora o tivesse lido várias vezes, ainda assim conseguia me tirar algumas risadas. Uma garota de cabelo roxo, sentada em uma mesa próxima, parece que gostou da cena; sentado com um latinha do lado, ria sozinho lendo o livro de bolso. Em duas oportunidades que retirei rapidamente os olhos das páginas, pude ver que ele acompanhava meus movimentos com interesse. Em outra oportunidade talvez rendesse frutos.
Ela chega como quem não quer nada, vai logo dizendo que apesar do cabelo comprido, me reconheceu de longe: era o único que estava bebendo e lendo ao mesmo tempo. Os cabelos dela também estão bem grandes, alisados e mais claros que antigamente; a pele clara e o nariz naturalmente empinado não mudaram, mas o que sempre chama a atenção, o que me chamou a atenção de início foram aqueles olhos. O azul profundo e por vezes avassalador daquele olhar ficou retratado na minha mente em várias oportunidades: no dia em que a conheci, dez anos atrás, eram claros e esperançosos, notava-se a vontade de acreditar no que eu dizia; quando caí de moto, tempos depois e fiquei uns dias de cama, aquele azul nublado demonstrava o quanto a preocupação dominava suas ações; quando disse que a amava pela primeira vez, explodiram em um anil celeste, digno de um céu de brigadeiro e por fim, o nublado quase cinzento quando de cabeça baixa, tentando escapar das perguntas dirigidas pelos olhos dela, disse que estava tudo terminado.
Quase cinco anos de relacionamento, e cheguei do nada e disse que havia terminado. Do nada é modo de dizer: havia me apaixonado por outros olhos, negros como a asa da graúna e incrustado em um rosto leonino de uma outra beleza exótica. Fiz a troca de quatro anos por uns meses... Intensos e eternos enquanto duraram, mas mesmo assim, alguns meses.
Após os usuais ois e como vais, as perguntas por amigos e parentes, nos transferimos para um local mais adequado para uma conversação daquelas. Em frente ao lago Vaca Brava (nome estúpido para um lugar tão belo), em um restaurante da moda nos acomodamos e continuamos a conversação. Respondia as perguntas dela, mas me esquivava das indagações daquele olhar azul de tempos antigos... Olho para os preços no cardápio e me lembro que quando começamos, eu sempre fazia as escolhas olhando para o lado esquerdo do menu. Os preços não eram problema, naquela época. Hoje meus olhos correm desesperados pela fileira da direita, enquanto a mente faz as somas para saber se o bolso consegue equilibrar a balança entre receita e despesa.
Era mais magro, mas não tão atlético, meu guarda roupa era infestado de ternos e gravatas, sapatos pretos e o corte escovinha me fazia parecer um milico envergando um Armani. Hoje, camiseta branca e calça jeans constitui em suma meu acervo. Mais alguns milímetros e poderei amarrar a cabeleira. Ela continuou com aquele olhar penetrante. Tentou me devassar e falei um pouco mais do que deveria. O pior foi lembrar de detalhes que ela já desconhecia. Irônico, para um cara que destruiu parte do setor de memória. Politraumatismo craniano, história antiga.
Formada e com pós em alguma coisa que não entendi; eu reativando Letras, depois de ter jogado fora dois anos de filosofia pela janela. Trabalha agora na maior capital do país, em uma grande indústria de produtos de saúde; egresso do mercado de trabalho, apliquei esse anos em vários tipos de negócios, de dia ou noite, colecionei estórias e experiências. O dinheiro, similar ao que foi feito por um jogador de futebol, investi em mulheres e muitas farras, o restante simplesmente eu gastei.
- Trabalho com marketing agora. E você?
Tentei inventar algo sobre uns projetos importantes. A toalha voou rápido.
- Escritor cola?
A conversa tomou outros rumos, afinal a literatura não paga minhas contas, entretanto aquele olhar continuava me avaliando, não só o exterior, mas também tentava desencavar algo de dentro de mim. Para minha sorte e perdição, sempre consegui disfarçar muito bem o turbilhão de coisas que se passa dentro de uma alma atormentada. Se houvesse Oscar para isso, era meu com certeza. Em mais de uma oportunidade, diga-se de passagem. Um silêncio inconveniente foi quebrado graças a “Loosing my religion” e a voz rasgante e deslocada no tempo de Michael Stipe atiça o braseiro de lembranças. Jurei mentalmente que se fosse seguida de “Refrão de Bolero”, me jogaria embaixo de uma carreta de dezoito rodas.
Matamos um pouco do tempo conversando sobre as pessoas que passaram em nossas vidas, neste espaço de tempo e sobre essa solterice que nos acompanha: a quase totalidade dos nossos amigos em comum está casada ou em vias disso. Lembrei que seu olhar sempre brilhava ao ouvir a palavra “casamento”, mas sempre desconversava e dizia que tinha que se formar e fazer um mestrado antes. Agora já fez tudo isso.
Tirou um envelope de dentro bolsa e o balançou lentamente no ar. Então era a respeito disso que se tratava este encontro. Pagou a conta no cartão, levantou-se e me deu um longo beijo, daqueles bem antigos, de durar música inteira. Depois ajeitou a maquiagem rapidamente, deu uma retocada no batom. Na saída, atirou-me o convite de casamento na cara:
- Você nunca vai crescer mesmo.
Aquilo me desmontou. Dei o sorriso mais sacana que pude e não entreguei os pontos. Agora era ela quem desabava. O olhar, aquele olhar, o mesmo de dez anos atrás, havia me dito tudo, havia entregue todos os planos e desilusões em um átimo de segundo, em um vislumbre poético de uma alma feminina, tão forte na dor quanto no parto. Invejei aquilo. Por fora era a mesma rocha de sempre, mas meu interior estava mais liquefeito que mingau. Sorri de novo. Um sorriso dado na hora certa sempre quebra o clima. Virou-se e saiu, altiva e nobre.
Enquanto ela entrava no importado que havia alugado, fiquei me cobrando uma atitude, qualquer coisa. Lembrei que ainda tinha um dinheiro no bolso e que ela havia pago todo o consumo. Assoviei para o garçom e pedi que reabrisse a conta.
- Têm Jack Daniel´s ? Traz um duplo. E sem gelo, por que gelo no J.D. é pecado grave.

04 agosto 2007

O "FINJA"


O recado do assistente fez com que Adalberto percebesse que estava em sérios apuros. Não fora pego em flagrante, mas ele afirmara com plena certeza que sua mulher dispunha de provas suficientes que ele tinha um caso com Dona Soraya, a secretária bilíngüe, loira de 1,78, farta de frente e de fundos... Imaginava já o olhar colérico da esposa e a faca que ela empunharia, dizendo coisas assombrosas a respeito do destino de suas zonas baixas... Agora entendia o distanciamento dela e a falta de interesse. Havia sido descoberto, isso era claro. Mas naquele momento, precisava salvar seu casamento, não que morresse de amores pela mulher, mas pela herança que ela representava, os negócios não iam bem e voltar a ser um zé ningém não era algo que estava em seus planos. Teria que usar de algo que aprendera em um passado remoto, em anos de intenso treinamento e que jurara há tempos que nunca mais usaria. Teria que usar todos os seus poderes de kaoísta. Parado em frente sua casa, sentiu as lembranças desaguarem em sua mente...
As serras eternas do estado de Goiás, cobertas pela vegetação baixa, as pequenas e retorcidas árvores, características do cerrado, o cheiro de frutas silvestres (mangaba, pitanga, jenipapo) permeavam o ar e indicavam que estavam na estação das chuvas. Seis meses aguados, seguidos de seis secos. Todo ano era assim. Era nisso que Adalberto, cabeça raspada e metido em um macacão jeans, pensava até ser despertado por um peteleco:
- Outra vez perdido nos pensamentos?
- Sim Mestre, desculpe isso eu... – outro peteleco forte estalou na sua orelha.
- Você se entrega muito fácil, Pequeno Quati*! E ainda pediu desculpas? Treze abdominais repetindo os lemas sagrados!
- “Negue... Negue até as últimas conseqüências, mas negue!”
- E o segundo?
- “O verdadeiro kaoísta nunca fica sem palavras... Elas criam vida em sua boca e o ajudam a quebrar qualquer galho”!
- Hummm... Mais convicção, o próximo!
- “Um kaô dito com convicção é mais forte que uma verdade tremida”
- Por quê?
- “Quem não deve, não treme!”
- Coloque isto na cabeça, Pequeno Quati... O mundo lá fora é uma selva e se seu kaoísmo for fraco, você será fraco! Ele te engolirá, está me entendo?
- Sim Mestre!
- Já evoluiu muito desde que veio aqui para o Mosteiro do Kaô, mas ainda há muito para você aprender.
- Mestre, é verdade que teremos um desafio contra os “Monges do Agá”?
- Sim... E temos que manter a hegemonia de dez anos sem perder para eles.
- Mas eles treinavam com o senhor, Mestre?
- Isso foi há muito tempo, pequeno carnívoro...
- Então eles conhecem todos os seus golpes.
- Há uma regra secreta entre os mestres kaoístas: nunca ensine todos os seus truques e desenvolva secretamente outros que ninguém saiba... Agora troque de roupa que os monges chegarão a qualquer momento.
- Mestre, por que eles foram expulsos?
- Levaram o kaô para o lado negativo... Deram a se meter com pessoas muito suspeitas, indivíduos metidos em ternos caros, carros importados, siglas esquisitas, falas enroladas e desculpas esfarrapadas, que queriam utilizar o kaô para seus funestos fins...
- E o que estes seres utilizam agora?
- O Agá, que é uma forma desvirtuada do kaô... Veja bem, o kaô é utilizado para diversos fins, tipo atraso na entrada do trabalho, uma escapadela no fim de semana, um caso passageiro com a secretária ou algo neste sentido, nada que vá prejudicar seriamente alguém, ou dar algum prejuízo... O kaoísta experiente têm condições de enfrentar o “encosto gastador” (aquele que te encarna e o faz gastar toda a grana numa noitada só), assim como o “encosto pegador” (o que leva a encarar qualquer dragão depois da segunda dose)... Já os praticantes do agá não se preocupam com suas ações, usam seus poderes para ludibriar os outros, posando de bons moços até quando suas ações suspeitas são comentadas; sabem muito bem os golpes da dissimulação e da desinformação... Enfim, são o lado negro do kaô. Agora vá e se apronte.
- Sim, Mestre!

Naquela noite encontraram-se todos reunidos no grande salão, kaoístas de um lado, monges do agá do outro... Via-se que os monges estavam mais determinados do que nunca; cansados de tantos anos de humilhação, os monges haviam feito uma preparação especial, “lá pros lados da Esplanada”, em um palácio pomposo com duas torres flanqueadas por duas enormes “bacias”, cada uma delas voltada em uma direção, acima ou abaixo. Os gestos largos, mãos pelo ar, as falas que iam em um crescendo, criadas especialmente para palanques, mas que tinha um rendimento espetacular nos tatames, estavam já surtindo efeito: percebia-se nos rostos dos aprendizes kaoístas um certo desconforto, que poderia denunciar o medo do combate. Sodi Mahis, o monge supremo dos seguidores do agá sorria confiante, esperando o começo da luta.
- Pois bem, Mestre Eoh Tao, o reinado do kaoísmo termina hoje...
- Não tenha tanta certeza, Mestre Mahis... Sinto que algo paira neste ambiente.
- Eu também sinto. É a covardia e o medo de seus alunos que empesteia o lugar.
- É algo bem maior que isso... – E enigmaticamente, sacou um colar de fitas coloridas e ficou em pose de meditação.
Quando estava para soar o grande sino, enquanto todos os contendores se preparavam, um berro ecoa paralisando tudo:
- Parem tudo! Sinto a presença de um “Finja” entre nós!!!
Um óóóó ecoou de praticamente todas as bocas
- Um Finja! - a maioria repetia estupefata
- O que acontecerá conosco agora?
- Ó céus, um Finja entre nós...

Até que alguém teve a coragem de dizer:
- Peraí, o que é um Finja, caraio?
Os dois mestres postaram-se no meio do círculo formado pelos lutadores:
- O “Finja” é um praticante do “Finjitsu”, a milenar arte marci-labial do fingimento, utilizada somente pelos maiores mestres. Precisam ser destros tanto no kaoísmo quanto nas artes do Agá para serem considerados um verdadeiro Finja... E é o único que pode derrotar os dois estilos sem fazer muita força.
O terror se apossou dos jovens corações de todos os alunos. Um vento forte, com um silvo amedrontador começou a percorrer, gelando espinhas e espíritos. De súbito, o mestre kaoísta começa uma cantinela solitário:
- Urueuauau, urueuauau, urueuauau...
As luzes se apagam e tudo cai em uma escuridão total, golpes secos são ouvidos no breu e o som de corpos sendo lançados de um lado para outro, violentamente. É tudo muito rápido. Em questão de minutos, as luzes voltam mostrando um quadro desolador: no meio de vários alunos caídos, o único que permanece de pé é Adalberto, o Pequeno Quati. Todos olham para ele com um misto de raiva e medo:
- Maldito Finja! Estava entre nós o tempo todo!
- Expulsem o indesejado... Mercenário, crápula!
- Peraí, eu nem...
- Basta – diz o mestre kaoísta, se levantando lentamente. Caminhou até a porta e ficou parado de costas, fitando o horizonte – O torneio não será realizado. Peço aos monges que se retirem agora, para que possamos tomar conta do pária.
Apesar dos protestos de Sodi Mahis e seus monges, ao simples olhar do Pequeno Quati, agora alçado ao posto de ameaça Finja, abaixaram as cabeças e saíram todos em um só bloco. Os kaoístas aprendizes os seguiram, não menos preocupados.

- Mestre, eu...
- Não precisa tentar se defender. Quando alguém é marcado como um Finja, nunca mais perde o estigma. Pode ser que você não seja o indivíduo, e tenho cá algo que me diz que você não é, mas não posso colocar o mosteiro em perigo. Arrume suas coisas. Sua permanência entre nós acabou.

Voltando ao presente, Adalberto, ex-Pequeno Quati, sabia agora o que teria que fazer. Qual a melhor defesa em caso de desconfiança? O ataque, lógico. Entraria enfurecido em casa, batendo portas e gritando, “cadê o salafrário” “eu mato!” “hoje eu como um cuzinho!” e coisas do gênero. A mulher ficaria tão assustada que nem se lembraria que ela é quem tava com a razão. E foi o que fez. Arrebentou a porta da frente, subiu as escadas gritando como um possesso. Segurava o riso quando arreganhou a porta do próprio quarto e viu a cena: Elise, sua esposa, em vestes de eva, de quatro sobre a cama, tendo atrás de si ninguém menos que Eoh Tao, seu antigo mestre no kaoísmo. Que nem enrubescido ficou, o sacana:
- Então, está usando a velha técnica da “defesa-atacante”, Pequeno Quati!
- Bom, eu... Peraí! Você tá comendo a minha mulher! Ah, mas eu te mato, fiodumaégua!
Adalberto voou no pescoço do outro quando começou a ouvir uma cantinela:
- Urueuauau, urueuauau, urueuauau... – O vento aumentou e as luzes se apagaram de repente...

*Quati: O quati ou coati (do tupi "nariz pontudo") é um mamífero da ordem Carnivora, família Procyonidae e género Nasua. O grupo está distribuído desde o Arizona ao norte da Argentina.A coloração, em geral, é cinzento-amarelada, porém muito variável, havendo indivíduos quase pretos e outros bastante avermelhados, focinho e pés pretos, cauda com 55 cm, com sete a oito anéis pretos. Mede de corpo 70 cm. Vive em bandos de oito a 10, é praticamente onívoro, e se adapta bem ao cativeiro. São animais diurnos e não aceitam muito bem a traição.
Kaoísmo: Fomar milenar e zen-bundista de aplicação do kaô. O verdadeiro kaoísta é o que consegue transformar a realidade com palavras (ou seja, leva todo mundo no gogó, que é um dos mais fortes golpes dessa arte marci-labial). Um mestre kaoísta nunca fica sem palavras, elas criam vida em sua boca e o ajudam a quebrar qualquer galho.

24 julho 2007

Baixo Méier

Vendo os comentários dos "Encontros BDE", lembrei da última cerva que tomei nos confins cariocas, com Flavinha e Ossip em um bar de metaleiros, no Baixo Méier, logo após ter conhecido Don Perrignone e a bela Viviane...E o que resolvemos fazer naquele ambiente cheio de fumaça de cigarro (?) e ouvindo os berros do Ozzy? Pois é... Resolvemos fazer poesia,rs Segue abaixo uma das que nasceram naquele ambiente:

Eu outra vez
quase no lado negro da força
eu lembrando os olhos
que aqui não estão...
eu bêbado
sem dó nem piedade
estou no Rio
céu e inferno em forma de cidade

Que se fodam as chamas
se as companhias que te chamam
são as melhores possíveis

Quero parar de escrever
a vez da caneta ceder
mas a idéia não me deixa
abandono a pena...
volto outra vez para a cerveja

18 julho 2007


Alguns pobres escritores derrubados pela boemia... BDE na FLIP, que judiaria!

LIVRE ARBÍTRIO

Um despertar de raiva. Havia vários jeitos de se acordar, mas o despertar raivoso realmente preocupava. Sempre descambava em merda. Em dias destes, já tinha largado ótimos empregos, terminado bons namoros, destratado péssimas amantes, mudado toda uma vida. Só um fato não mudava. Em dias como este, sempre fazia merda. A raiva incontida, trotoava ligeira sob a fronte, esperando um comentário menos inteligente, uma brincadeira maldosa, um esboço de pensamento para lançar-se mundo afora, represada que era normalmente, disfarçada em um sorriso cortês e gentil; em certos aspectos ainda vivia orientado por manuais de lanchonetes fast-food. Um despertar de raiva era tudo que a raiva podia querer. Concedia condicional para o mal aprisionado dentro d´alma, inconcebível, diante algumas opiniões, inexistente perante outras, detestável e esquecível para quem já o havia presenciado. Janis deslizava pelo ar, ordenando tentar (just a litle bit harder), então era só amar, amar, amar alguém. Quem? A raiva, agora ódio, não sabia responder. Então era isso: o tempo passava continuamente e as possibilidades iam se esgotando. Quanto mais tempo, menos variáveis. Quanto mais experiência, menos lugares para aplicá-la. Quanto mais ódio, menos pessoas para direcioná-lo; o afastamento da humanidade, pelo menos na ótica das relações interpessoais, granjeia adeptos diariamente. Séculos de está bom assim, tá certo, eu concordo e não se preocupe, costumam se incrustar n´alma, se avolumando e enegrecendo humores, causando desconforto e rancores. Rancores estes alimentados diariamente com sucrilhos, adolescentes fortes que se tornam adultos vigorosos, tomam corpo e exigem espaço: pronto, está se formando mais um psicopata.
Pensamentos que ecoam em um cérebro rápido e celerado, dando voltas cada vez mais aceleradas sem pit-stops, levam passos pausados para lojas de armas. Dedos longos indicam, os olhos observam e a boca matraqueia qualidades do objeto procurado. Repetição, eficácia, penetração, alcance e calibre são estudados. Por sugestão do vendedor, que fez vista grossa pela falta do porte de arma, ao ver as notas dispostas em série, a escolha do mais caro: se já tivesse munição, começaria por ali. Um teste, por assim dizer. Se municia falando em caçada, indiferente à indiferença pela mentira, abre a mochila e se vai. O vendedor vai até a porta da loja e dá um sorriso satisfeito.
Uma praça de alimentação de shopping-center, dois ovos maltine e cinco casquinhas depois, observava com frieza o ambiente climatizado. A mão isolada dentro da capanga, esperando trêmula pelo instante, uma faísca que falta surgir. Uma vontade de acabar com tudo que restava ser saciada. Um momento de revide no presente, um retraçar de metas estipuladas em vidas que passeiam paralelamente alheias. O gosto do poder de comandar destinos, na verdade, de destruir sonhos, enterrar esperanças e silenciar vozes. O levantar estático, disposição suicida de não voltar atrás, espera começar pelos que sorriem mais, estes que debocham das dores e dos amores, ao som do mar e à luz do céu profundo, fulguram... Figuram colunas sociais e escândalos nacionais, sob o manto mesquinho e avarento da impunidade; por que todos não somos perdoados? Por que a condescendência atinge somente alguns? Por que a vida nega favores justamente para aqueles que mais deles necessitam? Doze balas iriam dar as respostas que procurava? Talvez não, mas havia trago vários pentes sobressalentes; continuaria seus questionamentos até achar uma resposta razoável. Ou uma morte rápida...



Deu um passo adiante, já tirava a arma de dentro da mochila quando esbarrou em uma senhora franzina que trabalhava na limpeza. Levava uma bandeja repleta de copos de papel e restos de sanduíche que espatifaram-se no chão, causando uma bagunça e um barulho não observados pelos comensais que continuavam a rir, beber, conversar, comer, mentir e opinar sem darem a mínima atenção ao que acabara de acontecer. Ele abaixou timidamente, desculpando-se pelo acidente. A velha, ajoelhada no piso, deu um sorriso amargo e sincero, confirmado pelo olhar cansado e castanho de muitos anos de luta:
- Tudo bem,meu filho! - Aquelas palavras causaram tanto impacto em sua mente febril, que ele teve que dominar-se para que uma onda de emoção, vinda não se sabe de onde, o dominasse. Acocorou-se ao lado da velha, pensava no que faria, afinal aquela senhora de joelhos em sua frente, não obstante todos os problemas, as dificuldades, humilhações, desrespeitos, continuava a manter viva a chama indomada da esperança em dias melhores; de lutar a cada dia uma batalha que ele já julgava perdida e por isso decidira ir ali, com aquele intento assassino na cabeça...Sentiu que uma onda de emoção percorria seu corpo, coisa que até então não havia lhe ocorrido. Parados naquele instante, pode ver que ela olhava com tristeza para a arma que segurava.
- Isso resolve algo? – apontou para os indiferentes que os cercavam e arrematou – Há algum dentre eles que é menor do que nós, para que possamos tomar as mesmas atitudes que sempre tomam? Em quê melhoramos e onde chegaremos?

Final

Fechando a mochila com um gesto rápido, precipitou-se para a saída. Ao passar por uma lata de lixo jogou o invólucro recheado de morte e pegou o rumo de casa. Por-se-ia a escrever, esta noite. Sua loucura sempre apaziguava quando escrevia.
O sol caia lento no horizonte quando dois personagens se encontraram no estacionamento do centro de compras:
- Você trapaceou... – acusava o rapaz... – Interferiu nas escolhas quando apareceu como uma pobre coitada que levava o mundo nas costas.
- Pensa que não sabemos que você ajudou na aquisição da arma?
- Errr... Hehehe. Continuam de olho em tudo, hein? Ora, convenhamos, no meu caso, trapacear não é novidade.
- Entendemos isso. Por isso a Direção optou pela segunda chance para o garoto repensar o que estava fazendo...
- E o tal do livre arbítrio? Vocês são muito historinha mesmo... Se têm uma coisa que não suporto é quando burlam as próprias regras... Elas se aplicam a mim? Lógico que não, pois se aplicasse não estaria lá embaixo, na segunda divisão! – Saiu andando e esbravejando, sumindo em uma nuvem de enxofre.


Final 2

Jogando a mochila nas costas, com um gesto rápido, levantou-se e apontou a arma para a primeira mesa, no rosto um olhar de ódio, olhava as vítimas, que ainda não haviam se dado conto do que ocorreria... Premia já o gatilho com um gosto de sangue na boca, quando um vulto branco, que podia jurar ser uma imensa asa de pombo, atingiu-o de lado, lançando seu corpo no vácuo... Despencou da praça de alimentação, no terceiro piso, vindo a se estabacar sobre a feirinha de produtos esotéricos; morreu em cima dos cristais que prometiam cura...

O sol caia lento no horizonte quando dois personagens se encontraram no estacionamento do centro de compras:
- Mas, mas que merda foi aquela? – acusava o rapaz, colérico.
- Um espirro... Pedimos sinceras desculpas...
- Isso não vale! Ela interferiu no prosseguimento das coisas! Eu quero uma contraprova! Marmelada!
- Ora, ora... Se não era você quem ajudou na aquisição da arma...
- Isso é, hum... Um detalhe. Suas regras não se assentam muito para mim. Mas eles... Eles ainda têm o livre arbítrio. E vocês não respeitaram isso!
- Quem disse não respeitamos? O que aconteceu foi um lapso e nossa representante já foi inclusive chamada pela Direção, para prestar esclarecimentos sobre o acontecido. Provavelmente estará sob suspensão até novas ordens...
- Sei, sei...
- Regra nº 764736473/E, interferência no andamento natural do Destino...
- Vem cá, você acha que ela vai ser punida?
- Olha, pra te dizer a verdade... Vamos ter que fazer uma CPI...

Final 3

Deixando a mochila cair ao lado, olhou em redor as pessoas que riam e viviam.. Sentiu o peso duro e frio da própria existência, sentiu que a culpa não era do mundo, da vida ou das pessoas... A culpa sempre fora sua, de sua incompetência de gerir a própria existência, sua covardia em assumir riscos e seu medo de viver... A culpa não era daquelas pessoas que alegres viviam; um ser repugnante como ele não merecia continuar respirando o mesmo ar das outras pessoas...
Em um gesto rápido colocou o cano da arma na boca e premiu o gatilho. A explosão do cartucho aconteceu imediatamente... As bochechas ainda se estufavam pela expansão do ar, sendo empurrado pela bala que ainda atravessava o cano, quando ressoou alto, congelando o tempo e os movimentos:
- Pode parar por aí...
- O que você está querendo fazer? Mexer no contínuo tempo da vida? É total e completamente fora das regras! – a faxineira, junto ao recém chegado, eram os únicos que se moviam no espaço estático.
- Que regra o quê... Peguei vocês manipulando tudo, aqui e agora, sem desculpa nenhuma!
- Tá, quer dizer que você não entregou a arma nas mãos dele...
- Isso não vêm ao caso. O que importa é que isso ia acontecer mesmo...Ele ia sacar a arma e distribuir bala pra tudo quanto é lado... O bonde hoje ia descer cheio. E agora, por sua causa, tão querendo que eu leve somente este banana, isso eu não aceito!
- E quem disse que ele iria mesmo disparar contra os outros?
- Olha aqui, página 9472 da vida do fulano! – Apontou um calhamaço de papel.
- Peraí, como você teve acesso ao Roteiro da Vida ?
- Er... Ah, isso? Nada não.
- Sabia que é uma falta gravíssima ter acesso a “dados ainda não acontecidos”?
- Qualé... Suas regras não valem para mim. Mas alto, lá, me respondam uma coisa: se vocês sabem que exitem um “Roteiro da Vida”, com “dados ainda não acontecidos”, como ainda estufam o peito para dizer que estes coitados possuem “livre arbítrio”? Como vão escolher se já tá tudo escrito?
- Bom, é quer dizer... – um telefone toca- Só um momento... Sim Senhor, ok... vamos resolver tudo. Certo, será tudo feito para sanar isso. Hã? Tá sim... Aqui do lado. Toma... Não queria explicações?
- Não... Deixa pra lá... Nem tava me ligando tanto assim... Podexá que levo esse pôrquera mesmo... Diz que eu já fui...
- Ele não quer lhe atender... Tá... Já esperava por isso,sei... Ok, resolvo tudo por aqui... É, limpeza parece que virou minha área mesmo,hehehe. Já sei o que fazer...


LIVRE ARBÍTRIO

Um despertar de amor. Havia vários jeitos de se acordar, mas o despertar amoroso realmente deixava tudo lindo. Sempre descambava em coisas boas. Em dias destes, já tinha arranjado ótimos empregos, começado bons namoros, encontrado ótimas amantes, mudado para melhor seu futuro... Ele sorriu para o céu e saiu confiante pela rua. Era muito bom sentir que tinha total controle de sua vida...

(Postado no Blog Manufatura em 18/07/07)

18 junho 2007

Sonhos em Alemão

Sem dúvida, sou apenas um andarilho,
um peregrino na Terra!
E vocês, são mais que isso?
J.W.Goethe


Descia a Paranaíba (ou seria a Araguaia?), quando notei que estava de óculos novos. Pelas lentes e formato da armação, vi logo que era um modelo caçador, Ray-ban origem. Legal, mas mesmo assim eu o tirei do rosto para me certificar, lendo por cima da barrinha de metal que fica no meio dos aros. Estava lá com todas as letras; um legítimo produto Bauch & Lomb, só que isto não me trazia a resposta de como aquele raio de treco estava comigo. Bom, pela curvatura do sol indicava que ainda estava bem de manhã, algo por volta das 09:00 h, o que me trazia apenas uma teoria: havia passado a noite na farra. Isto explicava em parte estar de posse de uns óculos que não sabia de onde vinha. Provavelmente estava com alguém que bebeu comigo, lógico. Mas isso não explicava onde diabos estava o meu carro. Será que eu havia sido louco o suficiente para trocá-lo pelos óculos? Merda, se for, vai ser muito difícil desfazer a troca, ainda mais se eu nem sei quem é o filha da mãe que me passou a perna. Talvez essa pessoa sinta o mesmo pelos óculos. Meu carro não é lá assim uma Ferrari e dirigi-lo é algo quase sobre-humano para quem não o conhece. Mesmo eu sou vencido algumas vezes por sua inegável vontade não de funcionar. Chevettão 84, cadê você??? Acho que quem está com ele deve estar fazendo a mesma pergunta desesperada pelos óculos originais. Dejavú. Sinto que já passei por esta situação antes.
Foi a mais ou menos uns cinco anos. Ou seriam sete? Tanto faz. Era um Sábado de manhã e estava chegando em casa. Entrei pela garagem e tentei achar a chave da porta, mas necas da maldita. No seu lugar havia somente o chaveiro da velha Belina do meu pai. Ela era cortada e todos achavam que era uma Pampa. Eu achava que era o máximo não ter que abastecer. Tentei me lembrar um pouco. Havia ido ao bar do Treta encontrar a galera para o mesmo roteiro de Sexta-feira. Cerveja, cerveja e mais cerveja. Ás vezes uma batata frita. Tomei todas, falei um monte de asneiras para umas garotas esquálidas que se achavam modelos, beijei a mais feia e fui deixá-la em casa, uma rua abaixo. Na portaria do prédio nos desentendemos por alguma coisa que não valia muito a pena e depois eu fui embora de táxi. Era isso! Havia esquecido a chave de casa no console da Belina! E havia esquecido a falsa Pampa na porta do bar! Agora era só pegar dois ônibus e voltar para buscar as chaves e de tabela, trazer o carro do velho antes que ele percebesse a cagada que eu fizera.
A lembrança deste episódio me fez achar mais uma peça do quebra cabeça... Onde será que esqueci o Corvett’s? Olhei em volta e o mundo se materializou em poucos segundos. Estava parado agora na frente de um posto de gasolina e só então me dei conta que segurava um pequeno galão na mão esquerda. Na direita havia um cigarro. Era um Benson & Hedges, o que provava que havia serrado de alguém. Cigarro mentolado sempre me dava ânsia de vômito de manhã. Dei um último trago (fissura, fazer o quê?) e o joguei fora, afinal tinha que entrar no posto e nunca entro num posto de gasolina fumando. Mania besta. Ou um pequeno resquício de auto-preservação. Pedi ao frentista para colocar cincão (era o jeito de fazer cinco reais parecerem dinheiro, diz no aumentativo e ele parece aumentar de valor) e depois voltei ao lugar que estava na entrada, pensando se descia ou subia a, agora reconhecida, Av. Araguaia. Como ela tem somente um sentido acima da Paranaíba, fiquei olhando os carros descendo em baixa velocidade, tentando me lembrar se havia feito este trajeto.
Só então me dei conta que uma meia quadra acima, havia um acúmulo de pessoas em semicírculo. Observavam um acidente, obviamente. Merda. Será que havia batido o carro e ainda saí para comprar gasolina? Me aproximei timidamente, tentando reconhecer os veículos e não deixar que ninguém me reconhecesse. Logo vi que isto era uma idiotice, uma vez que não sabia quem eram as pessoas no local, daí como iria me esconder de quem eu não sabia quem era. Entenderam? Nem eu.
Um Renault Clio havia enchido a lateral de uma Strada. A velha do Clio estava errada logo vi. Coisas de quem já trabalhou com seguros, departamento de sinistro. Bem sinistro. Notei que o estrago não era grande, e que o Chevette estava estacionado atrás do acidente. Mas por que algumas pessoas olhavam tanto para dentro do meu ferro velho? Ao chegar na frente do pára-brisa, descobri. Havia uma loira ma-ra-vi-lho-sa deitada no banco do passageiro. Ponto. Descobri de uma só tacada de onde havia vindo o Ray-ban original e o cigarro. Agora só faltava saber o que aquela diliça estava fazendo dentro da minha caranga (e se eu realmente havia trocado os óculos pelo carro).
Coloquei o combustível no tanque, pedi um cigarro a um dos curiosos e depois entrei no carro para tentar dar partida no motor. O curioso arregalou os olhos ao me ver sentar ao lado da princesa adormecida. Senti o calor da inveja me atravessar o peito. Um pouquinho de sol também. Tirei a jaqueta e a joguei no banco detrás junto com meia mala de roupas que sempre estava por ali. Bombei o acelerador olhando para a loira e rezando para que o motor funcionasse. Ele expirou, tossiu e morreu. Tentei de novo e ele soltou um estouro. Parecia que estava acordando de mau humor. Nisso a bela desacordada se remexeu no assento (ufa, ela estava viva!) e disse algo ininteligível. Tentei entender o que era, mas parecia que ela falava outra língua. Repetiu agora um pouco mais alto e tive certeza que era outra língua. Mas, raios, que merda de idioma era aquele? Já havia ouvido algo parecido em algum filme, mas não sabia dizer qual era o título, nacionalidade então, lhufas.
O braço dela deu uma leve guinada derrubando a bolsa no assoalho, deixando cair uma porrada de coisas que estavam dentro. Havia o que eu audaciosamente julguei ser o básico em uma bolsa de mulher: batom, espelho mil e uma utilidades, uma caneta, carteira, algumas argolas, brincos, um celular descarregado, um tampax salva-vidas e um passaporte. Peraí. Passaporte ? Tava explicado o/a Haustfaguen que ela falou. Ela era gringa. Só restava saber de onde. Nem precisei abrir o dito cujo para saber. Na capa, embaixo de um engarranchado total vi uma palavrinha que respondeu tudo. Deutschland (lê-se Doitiland). Alemanha. Era uma conterrânea de Goethe, Bukowski, Hegel, Beethoven, Maquiavel e do Bruce Willis. Não, Maquiavel era italiano. Bruce Willis, o ator, nasceu na Alemanha, sim senhor. Bruce Lee, o lutador, nasceu em São Francisco. Estranho, não? É igual Fabérge, que era russo e todos pensavam que era francês por causa do nome.
Tudo bem. Nacionalidades a parte, isso não explicava a pergunta mais importante: quem era aquela gata e o que ela fazia no meu modesto, humilde e desligado carro. Outra vez puxei pelos cacos da memória para tentar explicar o até agora inexplicável. Veio devagar no começo, mas depois brotou tudo na mente. Ela é alemã. Gênio. Isso eu já descobri. Fazia intercâmbio cultural. Sensacional. Quase todas as estrangeiras que havia conhecido também eram. Eu a conheci ontem, em uma festa da faculdade, lá na casa do professor Pedro. Ela também havia estudado um pouco de filosofia na terra dela (quer filosofar? Vai pra Alemanha) e como eu, também havia bebido todas. Essa foi a parte em que nos encontramos. Trechos de alemão pra cá, migalhas de inglês de segundo grau para lá, um quê de português com sotaque e voilá! A gata tava no papo. Decidimos esticar a noite, ou seria a madrugada? Sei lá. Só sei que no meio da Araguaia, agora faz sentido, o maldito carro morreu de inanição. Ou sede se preferir. Após um cinco minutos de amasso, ambos embriagados, alguns vômitos pela janela, intercalados de beijos, sobre o freio de mão, desmaiamos romanticamente sujos e quase abraçados. A tal batida, de manhã, me acordou. Pequei o galão no porta malas, os óculos e um cigarro dela e fui em busca de um posto, inapelavelmente bêbado e sem saber aonde estava, até que me dei conta e começar esta pequena investigação. Agora era só fazer o maldito Corvett’s pegar e voar para casa. Ainda dá para dormir o dia todo grudado na loira (qual é mesmo o nome dela?) e depois... Pensando nisso, olhei novamente para aquele quadro de Rembrandt, que era ela dormindo, mas alguma coisa ainda me martelava a cabeça e me deixava encucado. Mas o que seria? O carro, eu já estava dentro dele. A gasolina, no tanque. O motor não pegava, óbvio. A gata era gringa. A língua, o alemão. O que havíamos feito, quase nada. Ainda. Como a conheci, na festa da faculdade.
Ops... Festa da faculdade? Mas, eu tranquei a faculdade no semestre passado...
Olho para o teto. Teve infiltração durante as chuvas do final do ano passado e agora descasca em vários pontos. Levanto a cabeça e dou uma busca no quarto. Estou deitado sozinho, novamente. Foi um sonho. Caraca. Como ela era gata! Putz, se soubesse que era um sonho e que não teria muito tempo, teria feito o sexo mais louco do mundo, dentro do Chevette, no meio da Araguaia e em frente de uma multidão de curiosos. Goethe morreria de inveja, se já não estivesse morto.

26 fevereiro 2007

Réquiem para um amigo (2)

Algumas horas depois, enquanto a carruagem sacolejava freneticamente em meio de uma chuva fina, dois emudecidos e embriagados oficiais (Rodolphe ficara na mansão, pois se recuperava de um ferimento antigo) encontravam-se a caminho do porto, onde haveriam de embarcar a Brigada reunida às pressas devido a deflagração de uma guerra já há muito esperada.
- Que achas – disse Junot, quebrando o longo silêncio – das futuras bodas da pequena Madeleine... Quem diria, ontem brincava com bonecas, hoje noiva!
Charles que encontrava-se às voltas com a abertura de uma das três garrafas de vinho que havia trago do banquete, resmungando a muito algo ininteligível, olhou somente de soslaio para o amigo, com aquele mesmo olhar que desferira após o brinde - Um janota... um almofadinha da cidade, um moleque... sua voz aumentava de intensidade pouco a pouco – Ademais ela ainda é uma criança, como podem deixá-la pensar em casar-se ? Loucos ! Isto é o que são ! – sua voz demonstrava uma tal emoção que o capitão nunca havia presenciado.
- Não meu amigo. Vejo somente que acabas de descobrir que as emoções também lhe têm em conta...
- O que está dizendo, homem ?
- Que, pelo visto, não se preocupa exatamente com o casamento pelo fato da idade da noiva, mas sim pela identidade do noivo.
- O que está insinuando, Louis ?
- Desculpe lhe abrir os olhos, mas acho que descobrimos agora que sempre estivera apaixonado e somente se deste conta disto hoje.
- Apaixonado, eu ? Pela irmãzinha ? Que idéia... – em seu rosto havia algo de escárnio, como se o outro houvesse contado uma anedota e ele se retorcesse em uma careta meio cômica, mas com algo de perturbador, e no seu íntimo, suas dúvidas foram desaparecendo como a névoa matutina ao raiar do sol. Estaria amando ? Sempre estivera em relações corriqueiras, passageiras como as estações, mas realmente nunca havia amado. Mas o que é o amor, afinal ? Será que talvez por não saber seu real significado não se dera conta ainda ? Teria sido tão idiota assim, se perdendo em rodeios e cavalheirismos inócuos, que não fizera a corte justamente àquela que agora era a senhora soberana de sua vontade?!
Estando perdido nestes pensamentos, ficara parado como uma estátua, garrafa semi-aberta na mão olhando para o nada. Coube a Junot tomá-la de suas mãos e terminar de abri-la:
- Um brinde à sua descoberta, mom ami, embora tardia... Mas não preocupe com o destino de M.lle. Madeleine. Como estamos indo para a guerra, talvez morramos antes da próxima semana... Sem haver ao menos preparado um terno decente para o casamento! - e explodiu em gargalhadas.

06 fevereiro 2007

Réquiem para um amigo

Primeira parte de um conto que a muito mora em um de minhas gavetas...

Desde os tempos do grande exército do Imperador, seus soldados granjearam a fama de grandes combatentes. Mesmo quando o general Oudinot foi derrotado por Garibaldi em Civitavecchia, estes militares ficaram conhecidos como os melhores do mundo. O comando, sob os auspícios do Imperador-general, era impecável. Entretanto, esta estória é uma das pequenas sobre as peças que moviam esta fabulosa máquina, os valores e as fraquezas deste exército, demonstradas não por grandes batalhas, ou atos heróicos, mas entre o relacionamento de três amigos chegados, que serviram durante este tempo.
Havia entre os corpos da Brigada, três oficiais que se conheciam deste o início de seus estudos militares: os capitães Saint-Viére e Junot, além do major De Vére. Eram grandes soldados, além de companheiros (sempre que as movimentações da tropa permitiam), inseparáveis. O encontrar desses camadas era, mesmo em tempo de guerra, o que mais os animava, nestes momentos entre eles a hierarquia desaparecia e punham-se a fazer piadas uns dos outros.
Rodolphe des Saint-Viére, era de uma conhecida família burguesa, muito próxima da realeza, que havia traçada seu caminho até ali de maneira mais satisfatória possível; somente era soldado pelas conveniências da época, como também movido pelo sentimento de aventura que abundava em sua alma; Louis Antoine Junot, apesar de dispor de uma alma de artista, sendo um misto de músico, desenhista e escultor, havendo inclusive emoldurado alguns anjos para o palácio, em um certo ano, era dado a arroubos de violência quando embriagado, o que fazia dele um barril de pólvora prestes a explodir a qualquer momento; mantinha-se deste modo entre a rigidez do exército e o amor nato às artes plásticas; já Charles de Neuff, sobrinho do Marqué de Vére (de quem herdou o título e nome ), fora criado praticamente dentro da caserna, visto que sua família deixara os bens ao encargo de seu irmão mais velho, que o enviou para a academia. Era, dos três, o melhor atirador, como também um péssimo escritor.
Como amigos tão chegados sempre se visitam uns aos outros, de Vére, sempre entediado com os outros brigadianos, assim que podia partia para propriedade Saint-Viére, onde além de encontrar seu companheiro de armas, também desafiava o velho Dr. Roland, pai de Rodolphe, para algumas partidas de xadrez, acompanhadas de discussões ora filosóficas, ora políticas. Gostava também de provocar a jovem Madeleine, a respeito de suas leituras sobre os romances de cavalaria dizendo que se algum daqueles campeões de papel, lhe desafiassem com suas espadas vingadoras, seriam prontamente abatidos com um só tiro. Nesta tarde em especial, após os triviais jogos e conversas animadas, foram todos convidados para aguardarem o jantar onde haveria uma grande surpresa. O major ainda tentou se esquivar premeditando que poderia ser algo que fosse particular sendo somente para os parentes, porém após os rogos dos presentes, em especial de Madeleine, concordou em ficar. No grande salão de jantar da antiga propriedade, um grande retângulo de aproximadamente 25 por 5 metros belamente decorado com tapeçarias retratando as proezas dos antepassados e iluminado por conjuntos de archotes dispostos nos cantos, seguros por estátuas de anjos cujas asas criavam algumas sombras engraçadas no teto, estavam agora todos devidamente acomodados ao redor de uma mesa proporcional em tamanho ao aposento, igualmente decoradas com vários tipos de pratos a serem servidos. De sua colocação, De Vére podia visualizar quase todos os convivas; Dr. Roland na posição de anfitrião, tendo a direita e esquerda seu casal de filhos, o obeso farmacêutico Chantecler, o Coronel Faby, do corpo de expedicionários, Monsieur Jaccard, o tabelião, juntamente com a esposa e o filho Pierre, além de alguns pacientes do velho cirurgião, que ele não conhecia bem. Pouco depois de soar o toque das oito, quando já começavam os ruídos dos pratos, sentiu uma mão pesando em seu ombro. Era Junot que acabara de chegar:
- Às armas, camaradas ! – gritou como se estivesse em batalha, assustando assim algumas das velhas senhoras – Chantecler lidera o ataque ! - o rosto do boticário corou instantaneamente – Por sorte, ainda não estraçalharam o pato, sussurrou para De Vére.
- Tem sorte de ainda haver bebida – este retrucou - olhe como Rodolphe já está alto... um pouco mais de vinho e poderemos chamar-lhe de Capitão Barril !
Assim entre risos e gargalhadas, o jantar seguiu, até que Dr. Saint-Viére levantou-se e tocou por três vezes sua taça com o garfo, solicitando a atenção dos presentes:
- Meus queridos – ele adorava usar esta expressão – tenho aqui perante mim grande parte de meus mais estimados amigos, além de minha família reunida, o que não é todo dia, visto que as necessidades da tropa consomem em muito do tempo de meu filho. Isto somente já valeria o brinde, entretanto há mais a lhes oferecer. Esta noite tenho o orgulho de comunicar que minha pequena rosa, Madeleine, foi pedida em casamento por Pierre Jaccard, o que enche meu coração de alegria.
Houve uma explosão de congratulações de quase todos os presentes. Digo quase todos por que Junot poderia jurar que viu vibrarem algumas faíscas no olhar fuzilante do major de Vére.