Planeta: Terra.
Cidade: Goiânia. Como em todas as metrópoles deste planeta, Goiânia se acha
hoje em desvantagem em sua luta contra um dos maiores inimigos do homem: o
pentelho. E, apesar dos esforços das autoridades de todo o mundo, pode chegar
um dia em que a terra, o ar e as águas estejam infestados das mais diversas
formas de pentelhos: os panfletários de diversas siglas, os reclamantes do meio
ambiente, os entregadores de panfletos, movimentos esparsos como as cores dos
MM´s ou os chatos que são chatos só pelo prazer que isso lhes causa. Com ou sem
uma causa válida. Quem poderá intervir? Spectreman?[1]
Segunda feira, passava
da uma da tarde e eu sentado no boteco ao lado do Centro Administrativo. Até aí
nada de anormal: tava rebatendo uma ressaca lazarenta. Ficava ali vendo o
rodízio de passeatas reclamando de uma ou outra coisa: primeiro havia vindo os
atendentes de cartório, depois os bancários e logo em seguida uma grande
passeata de professores da rede estadual; estão sempre entre os mais
pendurados. Entre uma greve e outra, aparecia um movimento disto ou daquilo:
sem-terra, sem-moradia, sem camisa, sem calça, sem vergonha, sem isso, sem
aquilo. Eu devia estar com uma cara pra lá de gozada, pois volta e meia alguém
mandava uma frase de ordem para o meu lado:
─ Você aí parado,
também é explorado!
Errado. Eu aqui parado, tô ficando é chapado,
pensei.
─ O povo, unido,
jamais será vencido!
Tá, diga isso para as grandes corporações e os grupos bancários...
─ Caminhando e
cantando e seguindo a canção...
Sempre tem um mané
para tirar a porra dessa música. Será que não cansam?
Foi então que reconheci uma voz no meio da multidão:
Foi então que reconheci uma voz no meio da multidão:
─ Juliano Werneck,
ainda entregue aos prazeres da Baco?
─ Poisé, Professor
Birowski. Não dizem que a vida é feita de momentos? Os meus são quase todos
aqui, no meio das garrafas.
─ Junte-se a nós e
exerça seu direito de cidadão, proteste!
─ Vão abaixar o preço
da breja?
─ Não que eu saiba; a
coisa aqui é mais pela política.
─ Entonces, tô fora.
─ “O pior de
todos os analfabetos é o analfabeto político”.
Ai, meu saco: Brecht[2] debaixo de uma lua dessas
é de estourar as bolas...
─ E a pior de todas as
sedes é a etílica, professor. Deixa a reclamança de lado e vambora chapar o
coco!
─ Você, como um
representante da classe literária tinha que se engajar mais, defender alguma
causa, algum movimento.
─ Sou do Movimento dos
Sem Movimento. Qualquer lugar para encostar e tomar uma é meu reino; toda mesa
de bar é meu campo e o balcão é o melhor exemplo da socialização da humanidade:
ali estão lado a lado direita e esquerda, ricos e pobres, empregados e patrões
e por aí vai...
Fechei os olhos por um
instante, a tarde estava estupidamente brilhante naquele momento. Clima perfeito
para uma pestana.
Foi o bastante para um
grupo de uns quinze ou vinte manifestantes abordarem o botequim:
─ Nós somos do
Movimento dos Sem Cerveja. Vamos desapropriar toda essa bebida
pequeno-burguesa!
Meu apitinho cívico
tocou na hora: na minha gelada ninguém bota a mão! Nada contra dividir o pão,
mas daí para bicar da minha garrafa, há uma enorme distância.
─ E quem disse que a
cerveja é uma bebida de elite? – protestei, mas intimamente meio que
concordando com os caras: com o preço que a loirinha tá, mais fácil e barato
tomar pinga ou catuaba, as campeãs das biroscas de subúrbio. Mas tinha que
defender meu suco de cevada com 60% de milho. Aprontei o gogó e comecei a aula
de história:
─ Tipo uns 10 mil
anos, conforme os cervejeiros mais antigos e ainda não afetados pela cirrose,
os homens descobriram, meio na cagada, meio na preguiça, que aquela parada de
deixar um monte de cereais jogados em um lugar qualquer acabava fermentando e
virando uma pasta que dava para fazer uma espécie esquisita de bolo. Vai daí
que uns caras de um lugar das antigas chamado Mesopotâmia, inventaram de tomar
uns goles da garapa que sobrava desses bolos, estando assim entre os primeiros
birituns da história.
A parada deu uma luz e
os fulanos ficaram com aquela cara de alegres, gente boa, achando tudo uma
maravilha. Pronto, tava inventada a cerva, mesmo bem diferente da que a gente
toma hoje... ─ Neste momento, o lugar foi cercado pela tropa de choque,
doidinha para valer a lei do cassetete e descer a borracha no lombo dos mais
inflamados. Levantei meu caneco com a autoridade que me era cabida, de
cachaceiro mais respeitado do boteco e pedi para eles aguardarem o final de meu
pronunciamento. E voltei à carga:
─ Daí, uns tempos
depois (não me pergunte quanto, nem os caras deviam saber: estavam todos
chapados), os egípcios chegaram quebrando tudo na rave mesopotâmica e acabaram
levando com eles o segredo mágico da fabricação da birita. Depois de muito
porre nas pirâmides, a coisa estendeu-se até os romanos darem as caras (e as
espadas). Como eles tinham um pezinho em cada canto, acabaram levando o néctar
para todos os lados, seja a Britânia (para posterior alegria dos futuros
ingleses), Gália (França) e outras paragens. Dizem inclusive, que César, o cara
mesmo, era chegado numa caneca da fermentada (na época ainda não deviam
cognominá-la de “loira” ou “gelada”). O nome cerveja acabou sendo uma homenagem
à deusa Ceres, o que demonstra que os homens quando bebem sempre estão com uma
mulher na cabeça...
Quando baixaram as
trevas da Idade Média, a fabricação da bebida acabou parando nos conventos,
onde os monges, com tempo de sobra para fazer experimentos mil, vide Mendel[3] e suas ervilhas, acabaram
criando outros tipos da bebida com diferentes técnicas de fabricação. O que
veio bem a calhar, pois com o crescimento dos conjuntos habitacionais, o povo
precisava de uma atividade para extravasar os maravilhosos hobbies medievais,
como o jugo e a servidão. Então, dá-lhes cerveja que a galera se acalma. Outra
coisa bacana que esses caras fizeram, por terem o quase monopólio da escrita,
foi deixar anotadas as técnicas de fabrico.
Daí surgiram os
mestres cervejeiros, que antes eram aprendizes na arte de fabricar a bebida com
próprios monges. Aderindo a moda dos artesãos dos burgos, começaram a produzir
cerveja em estabelecimentos próprios, as tavernas. Tais lugares logo, logo
acabaram virando points onde se discutia de tudo, menos religião e futebol: o
primeiro porque podia acabar te levando para a fogueira, o segundo por não
existir mesmo. Daí os caras falavam bastante, principalmente depois de umas e
outras, de política. Isso fez com que as autoridades da época acabassem botando
um olho nestes lugares. Foi quando surgiram os alcaguetes modernos, o popular
dedo-duro.
Durante a Idade
Moderna, quem vocês acham que estava em todas as mesas importantes da Revolução
Francesa? Nota zero para quem pensou em champanhe ou brioche: o que pegava bem
mesmo, independente se era entre girondinos ou jacobinos, era estar com uma
baita caneca na mão. Para molhar a palavra e aqueles discursos intermináveis da
liberte, egalité, fraternité[4].
Não existe nada mais fraterno que dividir uma cerveja com um irmão.
Com os adventos
científicos da revolução industrial, o ramo cervejeiro não ficou de fora, o que
transformou a breja no que ela é hoje, uma bebida de fácil acesso, popular e
com milhões de admiradores espalhados pelos quatro cantos do mundo, a conhecida
e admirada “loira gelada” (Acho inclusive que deveriam dar um Nobel, um Oscar e
um Pulitzer ao gênio desconhecido que gelou a primeira caneca de cerveja). Ideal
para todos os tipos de eventos: casamentos, batizados, aniversários e afins;
churrascos de fim de semana, reuniões com teor político ou não ─ Pude notar
então que o discurso já havia acalmado os ânimos de ambas as partes.
─ Daí vos pergunto,
meus caros, o que tem a ver o meu goró com o blá-blá-blá de vocês? Há algum
dentre vós, seja militante ou polícia, que não tome uma cervejinha?
Os manifestantes
entreolharam-se meio sem jeito, os policiais balançaram as cabeças concordando:
havia atingido todos em um ponto fraco, do lado direito do corpo, entre o baço
e o pâncreas: bem no fígado.
A manifestação, que
havia parado para ouvir minhas sábias e ébrias palavras, explodiu em palmas.
Havia pessoas chorando comovidas e abraços entre diferentes lados políticos:
esquerdistas e direitistas de mãos dadas com o pessoal do centro e todos
degustando um gole de cerveja.
Os canas gostaram
tanto daquilo que me colocaram na chefia deles. Questão de tempo, já tava
comandando a cidade. Daí para o governo do estado foi um pulo; a presidência
foi um passo natural, dadas às circunstâncias: um brado percorreu o país de
norte a sul, de leste a oeste: Manguaceiros, uni-vos!
Fui entronado como
governante enquanto os estoques de cerveja se mantivessem graúdos. Chamei o
pessoal da Embav, da Choça-Cola, Cachincariol, além de todas as outras marcas e
modelos de cerveja e firmei um contrato com eles para fornecimento eterno do
néctar da cevada para cada cidadão; aqueles que não bebessem podiam repassar
sua cota para o sortudo, quero dizer, parente mais próximo. Deste jeito meu
governo tornou-se vitalício logo de cara...
Fiz um churrasco e
chamei os amigos que tinha e não tinha. No meio da coisa, um dos políticos que
lá estavam resolveu reclamar que faltava sal na carne. Fiquei tão puto que
mandei prender o safado. Onde já se viu, o mocorongo ir numa boca livre e ficar
reclamando do que tá ganhando de mão beijada? Meti o safado na grade. E depois
dele foram os seus correligionários. E logo após os adversários. Mas o pior é
que eu peguei gosto pela coisa. O tal de mandar prender os outros...
Na outra semana já
tinha metido em cana quase um terço da população; uns por reclamarem, outros
por escutarem as reclamações e outros ainda por torcerem para o time errado:
qualquer motivo era motivo para mandar para o xilindró... Os xadrezes acabaram
todos lotados. Agora, além de arranjar mais espaço para os que tinham que
entrar, teria também que triplicar a produção de cerveja para conter a demanda.
Resolvi tudo com uma decisão radical: el paredón, lógico.
Mandei juntar logo uma
centena de políticos conhecidos, que era para ir quebrando o gelo e não ter
reclamação: e lá alguém ia achar ruim de passar o cerol em vagabundo?
O comandante do pelotão de fuzilamento começou
a contagem e olhou para meu lado:
─ Preparar, apontar...
Err... Senhor, eu poderia dar uma sugestão?
─ É para maximizar a
produção de presunto e a desova de safado?
─ Sim Senhor!
─ Então manda bala.
Quer dizer, pode falar.
─ É o seguinte; com a
quantidade de político ruim que a gente tem, fica uma grana meter uma azeitona
em cada um. Daí que o senhor faria a maior economia se usasse um método
diferente. E poderia investir a grana economizada na produção de mais cerveja,
o que acha?
O cara estava
estupidamente certo. Então, diretamente do Louvre, mandei vir uma das
guilhotinas remanescentes da Revolução Francesa. Agora os caras iriam ter a
honra de colocar seus pescoços em lugares já frequentados por outros mais
famosos, como Robespierre, Danton e Marat[5]... Não, peraí: foi uma
dona peituda, ou melhor, com muito peito que jogou esse cara para trás. Mas
isso é outra estória. Eu só não sabia onde ela ia se encaixar. Aliás, algo
ficava me perturbando já tinha um tempo e não sabia exatamente o quê.
A não ser que tudo não
passasse de...
─ Seu Juliano, Seu
Juliano! − acordei com o Etelvino, o garçom, sacudindo meu ombro ─ Vai mais uma
cerveja?
Olhei para os lados,
tinha cochilado em pleno botequim. Porra, apagar em mesa de boteco é o fim da
picada. Consultei o relógio e vi que estava em cima da hora para pegar o banco
ainda aberto. Disfarcei com um leve bocejo e mandei ver o resto do copo numa
golada só.
─ Passa a régua.
─ Vai participar da
passeata?
Balancei a cabeça
devagar em negativa:
─ Mexer com esse
negócio de política nada; acabei de descobrir que sou um ditador em potencial ─
ao ver a cara redonda e curiosa do atendente, emendei:
─ Mas nem sei se isso
é tão ruim assim no fim das contas. Vive
La Bierre![6]
E sai gingando com aquele andado de John Wayne[7] bêbado do cerrado.
E sai gingando com aquele andado de John Wayne[7] bêbado do cerrado.
[3] Gregor
Mendel (1822 – 1884) – Monge agostiniano, botânico e metereologista,
considerado o pai da genética por suas experiências com cruzamento de tipos de
ervilhas e outras plantas