18 junho 2007

Sonhos em Alemão

Sem dúvida, sou apenas um andarilho,
um peregrino na Terra!
E vocês, são mais que isso?
J.W.Goethe


Descia a Paranaíba (ou seria a Araguaia?), quando notei que estava de óculos novos. Pelas lentes e formato da armação, vi logo que era um modelo caçador, Ray-ban origem. Legal, mas mesmo assim eu o tirei do rosto para me certificar, lendo por cima da barrinha de metal que fica no meio dos aros. Estava lá com todas as letras; um legítimo produto Bauch & Lomb, só que isto não me trazia a resposta de como aquele raio de treco estava comigo. Bom, pela curvatura do sol indicava que ainda estava bem de manhã, algo por volta das 09:00 h, o que me trazia apenas uma teoria: havia passado a noite na farra. Isto explicava em parte estar de posse de uns óculos que não sabia de onde vinha. Provavelmente estava com alguém que bebeu comigo, lógico. Mas isso não explicava onde diabos estava o meu carro. Será que eu havia sido louco o suficiente para trocá-lo pelos óculos? Merda, se for, vai ser muito difícil desfazer a troca, ainda mais se eu nem sei quem é o filha da mãe que me passou a perna. Talvez essa pessoa sinta o mesmo pelos óculos. Meu carro não é lá assim uma Ferrari e dirigi-lo é algo quase sobre-humano para quem não o conhece. Mesmo eu sou vencido algumas vezes por sua inegável vontade não de funcionar. Chevettão 84, cadê você??? Acho que quem está com ele deve estar fazendo a mesma pergunta desesperada pelos óculos originais. Dejavú. Sinto que já passei por esta situação antes.
Foi a mais ou menos uns cinco anos. Ou seriam sete? Tanto faz. Era um Sábado de manhã e estava chegando em casa. Entrei pela garagem e tentei achar a chave da porta, mas necas da maldita. No seu lugar havia somente o chaveiro da velha Belina do meu pai. Ela era cortada e todos achavam que era uma Pampa. Eu achava que era o máximo não ter que abastecer. Tentei me lembrar um pouco. Havia ido ao bar do Treta encontrar a galera para o mesmo roteiro de Sexta-feira. Cerveja, cerveja e mais cerveja. Ás vezes uma batata frita. Tomei todas, falei um monte de asneiras para umas garotas esquálidas que se achavam modelos, beijei a mais feia e fui deixá-la em casa, uma rua abaixo. Na portaria do prédio nos desentendemos por alguma coisa que não valia muito a pena e depois eu fui embora de táxi. Era isso! Havia esquecido a chave de casa no console da Belina! E havia esquecido a falsa Pampa na porta do bar! Agora era só pegar dois ônibus e voltar para buscar as chaves e de tabela, trazer o carro do velho antes que ele percebesse a cagada que eu fizera.
A lembrança deste episódio me fez achar mais uma peça do quebra cabeça... Onde será que esqueci o Corvett’s? Olhei em volta e o mundo se materializou em poucos segundos. Estava parado agora na frente de um posto de gasolina e só então me dei conta que segurava um pequeno galão na mão esquerda. Na direita havia um cigarro. Era um Benson & Hedges, o que provava que havia serrado de alguém. Cigarro mentolado sempre me dava ânsia de vômito de manhã. Dei um último trago (fissura, fazer o quê?) e o joguei fora, afinal tinha que entrar no posto e nunca entro num posto de gasolina fumando. Mania besta. Ou um pequeno resquício de auto-preservação. Pedi ao frentista para colocar cincão (era o jeito de fazer cinco reais parecerem dinheiro, diz no aumentativo e ele parece aumentar de valor) e depois voltei ao lugar que estava na entrada, pensando se descia ou subia a, agora reconhecida, Av. Araguaia. Como ela tem somente um sentido acima da Paranaíba, fiquei olhando os carros descendo em baixa velocidade, tentando me lembrar se havia feito este trajeto.
Só então me dei conta que uma meia quadra acima, havia um acúmulo de pessoas em semicírculo. Observavam um acidente, obviamente. Merda. Será que havia batido o carro e ainda saí para comprar gasolina? Me aproximei timidamente, tentando reconhecer os veículos e não deixar que ninguém me reconhecesse. Logo vi que isto era uma idiotice, uma vez que não sabia quem eram as pessoas no local, daí como iria me esconder de quem eu não sabia quem era. Entenderam? Nem eu.
Um Renault Clio havia enchido a lateral de uma Strada. A velha do Clio estava errada logo vi. Coisas de quem já trabalhou com seguros, departamento de sinistro. Bem sinistro. Notei que o estrago não era grande, e que o Chevette estava estacionado atrás do acidente. Mas por que algumas pessoas olhavam tanto para dentro do meu ferro velho? Ao chegar na frente do pára-brisa, descobri. Havia uma loira ma-ra-vi-lho-sa deitada no banco do passageiro. Ponto. Descobri de uma só tacada de onde havia vindo o Ray-ban original e o cigarro. Agora só faltava saber o que aquela diliça estava fazendo dentro da minha caranga (e se eu realmente havia trocado os óculos pelo carro).
Coloquei o combustível no tanque, pedi um cigarro a um dos curiosos e depois entrei no carro para tentar dar partida no motor. O curioso arregalou os olhos ao me ver sentar ao lado da princesa adormecida. Senti o calor da inveja me atravessar o peito. Um pouquinho de sol também. Tirei a jaqueta e a joguei no banco detrás junto com meia mala de roupas que sempre estava por ali. Bombei o acelerador olhando para a loira e rezando para que o motor funcionasse. Ele expirou, tossiu e morreu. Tentei de novo e ele soltou um estouro. Parecia que estava acordando de mau humor. Nisso a bela desacordada se remexeu no assento (ufa, ela estava viva!) e disse algo ininteligível. Tentei entender o que era, mas parecia que ela falava outra língua. Repetiu agora um pouco mais alto e tive certeza que era outra língua. Mas, raios, que merda de idioma era aquele? Já havia ouvido algo parecido em algum filme, mas não sabia dizer qual era o título, nacionalidade então, lhufas.
O braço dela deu uma leve guinada derrubando a bolsa no assoalho, deixando cair uma porrada de coisas que estavam dentro. Havia o que eu audaciosamente julguei ser o básico em uma bolsa de mulher: batom, espelho mil e uma utilidades, uma caneta, carteira, algumas argolas, brincos, um celular descarregado, um tampax salva-vidas e um passaporte. Peraí. Passaporte ? Tava explicado o/a Haustfaguen que ela falou. Ela era gringa. Só restava saber de onde. Nem precisei abrir o dito cujo para saber. Na capa, embaixo de um engarranchado total vi uma palavrinha que respondeu tudo. Deutschland (lê-se Doitiland). Alemanha. Era uma conterrânea de Goethe, Bukowski, Hegel, Beethoven, Maquiavel e do Bruce Willis. Não, Maquiavel era italiano. Bruce Willis, o ator, nasceu na Alemanha, sim senhor. Bruce Lee, o lutador, nasceu em São Francisco. Estranho, não? É igual Fabérge, que era russo e todos pensavam que era francês por causa do nome.
Tudo bem. Nacionalidades a parte, isso não explicava a pergunta mais importante: quem era aquela gata e o que ela fazia no meu modesto, humilde e desligado carro. Outra vez puxei pelos cacos da memória para tentar explicar o até agora inexplicável. Veio devagar no começo, mas depois brotou tudo na mente. Ela é alemã. Gênio. Isso eu já descobri. Fazia intercâmbio cultural. Sensacional. Quase todas as estrangeiras que havia conhecido também eram. Eu a conheci ontem, em uma festa da faculdade, lá na casa do professor Pedro. Ela também havia estudado um pouco de filosofia na terra dela (quer filosofar? Vai pra Alemanha) e como eu, também havia bebido todas. Essa foi a parte em que nos encontramos. Trechos de alemão pra cá, migalhas de inglês de segundo grau para lá, um quê de português com sotaque e voilá! A gata tava no papo. Decidimos esticar a noite, ou seria a madrugada? Sei lá. Só sei que no meio da Araguaia, agora faz sentido, o maldito carro morreu de inanição. Ou sede se preferir. Após um cinco minutos de amasso, ambos embriagados, alguns vômitos pela janela, intercalados de beijos, sobre o freio de mão, desmaiamos romanticamente sujos e quase abraçados. A tal batida, de manhã, me acordou. Pequei o galão no porta malas, os óculos e um cigarro dela e fui em busca de um posto, inapelavelmente bêbado e sem saber aonde estava, até que me dei conta e começar esta pequena investigação. Agora era só fazer o maldito Corvett’s pegar e voar para casa. Ainda dá para dormir o dia todo grudado na loira (qual é mesmo o nome dela?) e depois... Pensando nisso, olhei novamente para aquele quadro de Rembrandt, que era ela dormindo, mas alguma coisa ainda me martelava a cabeça e me deixava encucado. Mas o que seria? O carro, eu já estava dentro dele. A gasolina, no tanque. O motor não pegava, óbvio. A gata era gringa. A língua, o alemão. O que havíamos feito, quase nada. Ainda. Como a conheci, na festa da faculdade.
Ops... Festa da faculdade? Mas, eu tranquei a faculdade no semestre passado...
Olho para o teto. Teve infiltração durante as chuvas do final do ano passado e agora descasca em vários pontos. Levanto a cabeça e dou uma busca no quarto. Estou deitado sozinho, novamente. Foi um sonho. Caraca. Como ela era gata! Putz, se soubesse que era um sonho e que não teria muito tempo, teria feito o sexo mais louco do mundo, dentro do Chevette, no meio da Araguaia e em frente de uma multidão de curiosos. Goethe morreria de inveja, se já não estivesse morto.

2 comentários:

Marco Ermida Martire disse...

Muito boa a história e o sonho, Deveras. Levou-me até a última linha facinho, facinho. Legal. Já tá no favoritos. Um abraço.

Deveras disse...

Valeu, irmão Marcos!