O espécie humana encontrou nas artes um dos catalisadores para exportar suas emoções e fazer florescer algo de tocante e sincero. O nome “Arte” vem do latim Ars, que significa técnica ou habilidade. Pela própria definição do nome percebe-se que não é tão simples quanto parece ser.
Era nisso que pensava eu, vivendo a tarde modorrenta e naquela seca de dar nó em pingo de pinga. Pensei em fazer algo de útil, tipo ajudar a ajeitar as coisas no mundo ou então lutar em prol de algo nobre e valioso. Algo que inspirasse as próximas gerações e fizesse com que a vida neste planeta tivesse verdadeiro sentido, levasse o nome do homem até a vigésima potência estelar ou marcasse a passagem humana na Terra de alguma forma. Mas essa vontade passou rápido e, como de costume, decidi ir para o Bar. “Uma cerveja antes do almoço é muito bom, prá ficar pensando melhor”, mas uma, três ou vinte depois do jantar é melhor ainda. A matemática nunca é uma ciência exata quando se trata de biritar.
Adentrei o BDE de forma irresponsavelmente incauta (é sempre bom estar com as orelhas em pé, vai que ta rolando um barraco ou outro?), quando dei de cara com um enorme ringue, daquele tipo mezzo Caesar´s Palace, mezzo Academia do Maguila. Reconheci alguns dos presentes, mas havia alguns rostos que, apesar de perceber ser a primeira vez que os via ali, tinham um quê estranho de conhecidos de muito tempo.
− Eita ferro. Será que a pancadaria agora vai ser institucionalizada?
− É o “Desafio do Galopeiro bêbado da beira do rio cantador” – Um zumbi de dois metros e meio (talvez três, medir os outros depois de tomar umas e outras não é um dos meus fortes), explicava o que acontecia.
− Mas, o que é isso?
− Bom, desafio porque alguém ta desafiando alguém. Óbvio. Galopeiro porque vai ter que galopar em alguma coisa, nem que seja na mesa. Bêbado porque tem que ir bebendo algo. A beira do rio cantador é que não sei bem para o que serve... Mas deixa o nome mais chique, não?
− É, pode ser.
Ajudou-me a levantar e nem bem estava pronto, me empurrou ringue adentro:
− Vai lá, a coisa é bem simples.
− Mas, mas o que eu faço?
− Sabe decassílabo, sáfico, gaita galega?
− Bom, conheço a Ritinha, que é uma galega das coxas grossas que...
− Então cala a boca e vai de prosa mesmo.
Olhei para o outro corner, o cara fazia uma cara estranha, com um protetor de mandíbula preto, daquele do Ivan Drago no Rocky IV, puro pesadelo, enquanto rosnava umas redondilhas com extrema maestria. Lembrei do que disse o Scliar: “Nunca cometi um poema na vida”. Merda... Eu já cometi alguns. Mas nada assim, metrificado, com swing e pendulo. Como enfrentar esses pesos pesados do verso? Tentei pensar em um dos grandes versadores da língua pátria, tipo faixa preta 50º Dan. Só saiu um e era gringo. Fernando Pessoa: “Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado / Para fora da possibilidade do soco”. Poema em linha reta, diretamente no nariz. Isso vai doer e não vai ser pouco...
Havia outro cabeludo no ringue, de costas. Uma espiada e vi a fuça do fulano. Olha lá, se não era o velho Dickinson:
− E aí, Bruce, que ta fazendo aqui?
− Tomando chá das cinco, palerma. Não vê que sou o juiz dessa porra?
− Mas peraí. Essa parada não é uma disputa poética?
− Sou músico. Poesia e música tem tudo a ver, “bloody bastard”!
O português do gringo me deixou sem palavras. O gongo soou e o aedo do outro lado lançou-se intempestivamente ao ataque.
Versei de leve, tomei um jab. Arrisquei começar um proseado, veio de lá um potente cruzado. Se pega, já era. Pensei em voltar pro rancho, pra não levar um gancho, mas ainda não tinha tomado nem dois goles. Nem três golpes...
Comecei a ganhar tempo, tentando salvar o que sabia de poesia da época da faculdade. Mas o catzo da coisa é que enquanto tava rolando as aulas de escansão e cositas más, aproveitei o tempo no Bar da Tia, praticando Sinuca I e II, além de halterocopismo e arremesso de guimba. É, eu to frito, pensei. Mas me ocorreu uma parada: os primeiros poetas recitavam os feitos de deuses e heróis. Daí que eram estórias contadas de maneira versada, mas estórias, mesmo assim. Isso quer dizer que tinha um quê de prosa. Melhor dar um jeito de enrolar e deixar o relógio para rodar. Começava a fazer o jogo de pernas quando alguém do meu corner gritou:
− Cuidado com o hexâmetro espondaico e o quinto pé espondeu!
Dei uma olhada de soslaio e vi que tinha uns caras tentando me dar umas dicas, cada um com um jeito mais diferente que o outro. Bailei para cá e para lá, escapei de vários tercetos, evitei uns quartetos e por fim o barulho metálico me colocou à salvo do primeiro round. Nem bem assentei e me vi cercado por três caras. O primeiro, mais atirado, foi logo falando, enquanto me passava a toalha:
− “Usted tiene” que tentar acertá-lo. É “su” única chance.
− Aí, tua fuça não me é estranha...
− García Lorca, à “su dispor”. Os outros “son” monsieur Mallarmé e mister T.S. Elliot. − Três bambas, primeira categoria, pensei.
− Mas a parada é que eu não sei versar desse jeito.
− “What a fuck”?
− Traduz, doutor.
− “Oura”, “Aprendemos o que é poesia lendo poesia”!
− Tá, eu concordo, mas é que...
O “boing” fez com que fosse lançado de novo no centro do ringue. E dá-lhe correr de martelos heróicos e da métrica clássica. Esquivar e esquivar, eis a única saída. O tempo, ainda bem, parecia passar bem rápido. Mas quando a luva passa rente ao nariz, tudo tem um aspecto meio câmera lenta. Voei para o corner de novo.
− O que você está fazendo?
− Sobrevivendo, chefia.
− “But this is” um absurdo!
− É que sou alérgico à pancada, doutor.
Outro “boing” e olha eu de volta. Em várias voltas, devo admitir. Não parei um só momento. Aliás, até que parei, quando o vocalista do Iron, quer dizer, o juiz, me deu um puxão de orelha:
− “Yeahhh”, falta combatividade. Menos um ponto.
− Melhor um ponto a menos no placar que dois a mais na cara.
− What?
− Deixa prá lá...
Havia sobrevivido até o oitavo round. Como tudo acabaria no décimo, já estava quase lá.
− Porque você “non” acerta ele?
− Falta de molejo poético, saca?
− Veja, “enfant”. Muita gente já tentou definir poesia. Acredito que “ a poesia se faz com palavras, e não com idéias”.
− “Todas as coisas tem o seu mistério, e a poesia é o mistério que todas as coisas tem”. − Lorca estava extremamente exaltado. Por fim Mallarmé retornou, ofídico:
− Acabe com “la resistance” de seu “adversarie” acertando umas tônicas bem no “fígadô” dele – protestei no ato:
− Queisso rapaz. Sei que é uma luta, mas é na brinca. Sou contra esse negócio de acertar a zona hepática. Como bom biritum, sei o quanto isso dói.
− “Oui”, você é quem sabe, “non”? Mas lembre-se daquele ditado sobre valer tudo no amor e na “guerre”.
Aquilo me deixou bem bolado. Até agora estava no lucro, a sorte do meu lado e os reflexos apurados. Mas as goladas de cerveja que tomava à cada intervalo estavam começando a surtir efeito: meus reflexos com certeza não agüentaria muito mais. Eu seria atingido, uma hora ou outra. Era questão de tempo. Foi o tempo do gongo soar de novo. Parti para o ataque, desta vez. Comecei soltando uma lorotinha básica e emendei um direto:
−Aê, já ouviu falar do “verso catatônico”?
−Cuma?!
O verbo entrou direitinho, passou pela porta e a fresta, entrou como quem acaba com festa, entre a beirada da sobrancelha e o meio da testa. Foi pá e bola. “Ta lá um corpo estendido no chão...” Ia virar só comemoração quando o juiz (sempre ele), gritou:
− Golpe baixo! Utilizou-se de um verso heterométrico! Metrificou, mas com grande variação!
Perdi mais um ponto e nem me importei. O importante é que não tinha levado na fuça. Deram um tempo para o outro se ajeitar, fiquei ali, na expectativa, entre o calor da glória e a frieza da vida.
O gongo soou mais uma vez e lá fomos, os dois, arremessados um contra o outro, a cento e sessenta e quatro sílabas por hora. Choque frontal, colisão de carrilhões, tragédia de trem-bala: o impacto foi sentido à mesas de distância. Vôo solene, aterrissagem forçada.
Mas o que ninguém esperava, aconteceu. Knockout Duplo: quando dois pugilistas golpeiam-se simultaneamente. Contagem aberta para ambos os lados, quem se levantasse seria considerado vencedor. A cabeça ainda balançava muito, mas eu comecei a reerguer-me. Do lado adversário veio o sussurro:
− Se ficar no chão, pago a cervejada no botequim.
− Ok, mas com uma porção de salaminho também?
− Meia porção. Mas pode pedir uma dose de pinga.
− Duas doses. E com limão!
− Negócio fechado.
Estiquei-me lá e fiquei vendo o juiz apontar o fim da contagem, a luta foi considerada nula. Aproveitei para pegar a mesa de sempre, no canto do boteco, ao lado do balcão, meio na penumbra. Os três do corner vieram beber comigo, assim como o adversário ferido. Mas o organizador da parada, o zumbi de dois metros e meio, passou jurando:
− Isso não vai ficar assim. Te pego lá fora... − afastou solene, com domínio dos pés, direito e esquerdo.
− “Usted non tienes” medo?
− Agora não – apontei para a prateleira de bebidas – Enquanto aquilo estiver estocado, não pretendo sair tão cedo.
− E quando acabar tudo?
Puxei minha Remington 12 para o lado e disparei:
− Aí eu dou um jeito...
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