08 agosto 2007

DÉCADA

“Você pode enjaular um tigre ,mas jamais terá certeza que ele está domado.
Com os homens a coisa é mais fácil.”
C. Bukowski

Dez anos. Cento e vinte meses. Mais ou menos 3650 dias, pois o ano bissexto atrapalha esta conta e as próximas. Oitenta e seis mil e quatrocentas horas, trezentos e onze bilhões e quarenta mil segundos. Este era o tempo aproximado que havia ficado separado da minha vida anterior. De quem eu era e quem sou agora...
Shopping em dia de semana é para quem têm muito para gastar ou para quem trabalha para ganhar. Caminho no meio das lojas com minha mochila nas costas, cheia de livros, despenteado, deixo o cabelo livre cair no rosto, sem me importar com o efeito ou com o olhar preocupado de uns seguranças, interessado de algumas vendedoras. Vou para a praça de alimentação.
Comprei uma cerveja em lata para rebater a ressaca lazarenta que toma conta do corpo. Segunda à tarde e eu com ressaca. Nada de anormal nisso. Havia recebido o telefone de manhã, mas só comecei a ficar mal da ausência de álcool depois do almoço. Levei meus sobrinhos no colégio e pus-me a andar daqui para lá, resolvendo uma coisinha aqui e outra lá: depósito em banco, orçamento de editora, um taxa na prefeitura e depois vim parar aqui. Enquanto bebericava a latinha, saquei um livro de um velho safado* e o lia para ajudar a passar o tempo. Embora o tivesse lido várias vezes, ainda assim conseguia me tirar algumas risadas. Uma garota de cabelo roxo, sentada em uma mesa próxima, parece que gostou da cena; sentado com um latinha do lado, ria sozinho lendo o livro de bolso. Em duas oportunidades que retirei rapidamente os olhos das páginas, pude ver que ele acompanhava meus movimentos com interesse. Em outra oportunidade talvez rendesse frutos.
Ela chega como quem não quer nada, vai logo dizendo que apesar do cabelo comprido, me reconheceu de longe: era o único que estava bebendo e lendo ao mesmo tempo. Os cabelos dela também estão bem grandes, alisados e mais claros que antigamente; a pele clara e o nariz naturalmente empinado não mudaram, mas o que sempre chama a atenção, o que me chamou a atenção de início foram aqueles olhos. O azul profundo e por vezes avassalador daquele olhar ficou retratado na minha mente em várias oportunidades: no dia em que a conheci, dez anos atrás, eram claros e esperançosos, notava-se a vontade de acreditar no que eu dizia; quando caí de moto, tempos depois e fiquei uns dias de cama, aquele azul nublado demonstrava o quanto a preocupação dominava suas ações; quando disse que a amava pela primeira vez, explodiram em um anil celeste, digno de um céu de brigadeiro e por fim, o nublado quase cinzento quando de cabeça baixa, tentando escapar das perguntas dirigidas pelos olhos dela, disse que estava tudo terminado.
Quase cinco anos de relacionamento, e cheguei do nada e disse que havia terminado. Do nada é modo de dizer: havia me apaixonado por outros olhos, negros como a asa da graúna e incrustado em um rosto leonino de uma outra beleza exótica. Fiz a troca de quatro anos por uns meses... Intensos e eternos enquanto duraram, mas mesmo assim, alguns meses.
Após os usuais ois e como vais, as perguntas por amigos e parentes, nos transferimos para um local mais adequado para uma conversação daquelas. Em frente ao lago Vaca Brava (nome estúpido para um lugar tão belo), em um restaurante da moda nos acomodamos e continuamos a conversação. Respondia as perguntas dela, mas me esquivava das indagações daquele olhar azul de tempos antigos... Olho para os preços no cardápio e me lembro que quando começamos, eu sempre fazia as escolhas olhando para o lado esquerdo do menu. Os preços não eram problema, naquela época. Hoje meus olhos correm desesperados pela fileira da direita, enquanto a mente faz as somas para saber se o bolso consegue equilibrar a balança entre receita e despesa.
Era mais magro, mas não tão atlético, meu guarda roupa era infestado de ternos e gravatas, sapatos pretos e o corte escovinha me fazia parecer um milico envergando um Armani. Hoje, camiseta branca e calça jeans constitui em suma meu acervo. Mais alguns milímetros e poderei amarrar a cabeleira. Ela continuou com aquele olhar penetrante. Tentou me devassar e falei um pouco mais do que deveria. O pior foi lembrar de detalhes que ela já desconhecia. Irônico, para um cara que destruiu parte do setor de memória. Politraumatismo craniano, história antiga.
Formada e com pós em alguma coisa que não entendi; eu reativando Letras, depois de ter jogado fora dois anos de filosofia pela janela. Trabalha agora na maior capital do país, em uma grande indústria de produtos de saúde; egresso do mercado de trabalho, apliquei esse anos em vários tipos de negócios, de dia ou noite, colecionei estórias e experiências. O dinheiro, similar ao que foi feito por um jogador de futebol, investi em mulheres e muitas farras, o restante simplesmente eu gastei.
- Trabalho com marketing agora. E você?
Tentei inventar algo sobre uns projetos importantes. A toalha voou rápido.
- Escritor cola?
A conversa tomou outros rumos, afinal a literatura não paga minhas contas, entretanto aquele olhar continuava me avaliando, não só o exterior, mas também tentava desencavar algo de dentro de mim. Para minha sorte e perdição, sempre consegui disfarçar muito bem o turbilhão de coisas que se passa dentro de uma alma atormentada. Se houvesse Oscar para isso, era meu com certeza. Em mais de uma oportunidade, diga-se de passagem. Um silêncio inconveniente foi quebrado graças a “Loosing my religion” e a voz rasgante e deslocada no tempo de Michael Stipe atiça o braseiro de lembranças. Jurei mentalmente que se fosse seguida de “Refrão de Bolero”, me jogaria embaixo de uma carreta de dezoito rodas.
Matamos um pouco do tempo conversando sobre as pessoas que passaram em nossas vidas, neste espaço de tempo e sobre essa solterice que nos acompanha: a quase totalidade dos nossos amigos em comum está casada ou em vias disso. Lembrei que seu olhar sempre brilhava ao ouvir a palavra “casamento”, mas sempre desconversava e dizia que tinha que se formar e fazer um mestrado antes. Agora já fez tudo isso.
Tirou um envelope de dentro bolsa e o balançou lentamente no ar. Então era a respeito disso que se tratava este encontro. Pagou a conta no cartão, levantou-se e me deu um longo beijo, daqueles bem antigos, de durar música inteira. Depois ajeitou a maquiagem rapidamente, deu uma retocada no batom. Na saída, atirou-me o convite de casamento na cara:
- Você nunca vai crescer mesmo.
Aquilo me desmontou. Dei o sorriso mais sacana que pude e não entreguei os pontos. Agora era ela quem desabava. O olhar, aquele olhar, o mesmo de dez anos atrás, havia me dito tudo, havia entregue todos os planos e desilusões em um átimo de segundo, em um vislumbre poético de uma alma feminina, tão forte na dor quanto no parto. Invejei aquilo. Por fora era a mesma rocha de sempre, mas meu interior estava mais liquefeito que mingau. Sorri de novo. Um sorriso dado na hora certa sempre quebra o clima. Virou-se e saiu, altiva e nobre.
Enquanto ela entrava no importado que havia alugado, fiquei me cobrando uma atitude, qualquer coisa. Lembrei que ainda tinha um dinheiro no bolso e que ela havia pago todo o consumo. Assoviei para o garçom e pedi que reabrisse a conta.
- Têm Jack Daniel´s ? Traz um duplo. E sem gelo, por que gelo no J.D. é pecado grave.

Um comentário:

Marco Ermida Martire disse...

Mandou bem aqui novamente! Mas eu gosto de JD de qq jeito!