04 agosto 2007

O "FINJA"


O recado do assistente fez com que Adalberto percebesse que estava em sérios apuros. Não fora pego em flagrante, mas ele afirmara com plena certeza que sua mulher dispunha de provas suficientes que ele tinha um caso com Dona Soraya, a secretária bilíngüe, loira de 1,78, farta de frente e de fundos... Imaginava já o olhar colérico da esposa e a faca que ela empunharia, dizendo coisas assombrosas a respeito do destino de suas zonas baixas... Agora entendia o distanciamento dela e a falta de interesse. Havia sido descoberto, isso era claro. Mas naquele momento, precisava salvar seu casamento, não que morresse de amores pela mulher, mas pela herança que ela representava, os negócios não iam bem e voltar a ser um zé ningém não era algo que estava em seus planos. Teria que usar de algo que aprendera em um passado remoto, em anos de intenso treinamento e que jurara há tempos que nunca mais usaria. Teria que usar todos os seus poderes de kaoísta. Parado em frente sua casa, sentiu as lembranças desaguarem em sua mente...
As serras eternas do estado de Goiás, cobertas pela vegetação baixa, as pequenas e retorcidas árvores, características do cerrado, o cheiro de frutas silvestres (mangaba, pitanga, jenipapo) permeavam o ar e indicavam que estavam na estação das chuvas. Seis meses aguados, seguidos de seis secos. Todo ano era assim. Era nisso que Adalberto, cabeça raspada e metido em um macacão jeans, pensava até ser despertado por um peteleco:
- Outra vez perdido nos pensamentos?
- Sim Mestre, desculpe isso eu... – outro peteleco forte estalou na sua orelha.
- Você se entrega muito fácil, Pequeno Quati*! E ainda pediu desculpas? Treze abdominais repetindo os lemas sagrados!
- “Negue... Negue até as últimas conseqüências, mas negue!”
- E o segundo?
- “O verdadeiro kaoísta nunca fica sem palavras... Elas criam vida em sua boca e o ajudam a quebrar qualquer galho”!
- Hummm... Mais convicção, o próximo!
- “Um kaô dito com convicção é mais forte que uma verdade tremida”
- Por quê?
- “Quem não deve, não treme!”
- Coloque isto na cabeça, Pequeno Quati... O mundo lá fora é uma selva e se seu kaoísmo for fraco, você será fraco! Ele te engolirá, está me entendo?
- Sim Mestre!
- Já evoluiu muito desde que veio aqui para o Mosteiro do Kaô, mas ainda há muito para você aprender.
- Mestre, é verdade que teremos um desafio contra os “Monges do Agá”?
- Sim... E temos que manter a hegemonia de dez anos sem perder para eles.
- Mas eles treinavam com o senhor, Mestre?
- Isso foi há muito tempo, pequeno carnívoro...
- Então eles conhecem todos os seus golpes.
- Há uma regra secreta entre os mestres kaoístas: nunca ensine todos os seus truques e desenvolva secretamente outros que ninguém saiba... Agora troque de roupa que os monges chegarão a qualquer momento.
- Mestre, por que eles foram expulsos?
- Levaram o kaô para o lado negativo... Deram a se meter com pessoas muito suspeitas, indivíduos metidos em ternos caros, carros importados, siglas esquisitas, falas enroladas e desculpas esfarrapadas, que queriam utilizar o kaô para seus funestos fins...
- E o que estes seres utilizam agora?
- O Agá, que é uma forma desvirtuada do kaô... Veja bem, o kaô é utilizado para diversos fins, tipo atraso na entrada do trabalho, uma escapadela no fim de semana, um caso passageiro com a secretária ou algo neste sentido, nada que vá prejudicar seriamente alguém, ou dar algum prejuízo... O kaoísta experiente têm condições de enfrentar o “encosto gastador” (aquele que te encarna e o faz gastar toda a grana numa noitada só), assim como o “encosto pegador” (o que leva a encarar qualquer dragão depois da segunda dose)... Já os praticantes do agá não se preocupam com suas ações, usam seus poderes para ludibriar os outros, posando de bons moços até quando suas ações suspeitas são comentadas; sabem muito bem os golpes da dissimulação e da desinformação... Enfim, são o lado negro do kaô. Agora vá e se apronte.
- Sim, Mestre!

Naquela noite encontraram-se todos reunidos no grande salão, kaoístas de um lado, monges do agá do outro... Via-se que os monges estavam mais determinados do que nunca; cansados de tantos anos de humilhação, os monges haviam feito uma preparação especial, “lá pros lados da Esplanada”, em um palácio pomposo com duas torres flanqueadas por duas enormes “bacias”, cada uma delas voltada em uma direção, acima ou abaixo. Os gestos largos, mãos pelo ar, as falas que iam em um crescendo, criadas especialmente para palanques, mas que tinha um rendimento espetacular nos tatames, estavam já surtindo efeito: percebia-se nos rostos dos aprendizes kaoístas um certo desconforto, que poderia denunciar o medo do combate. Sodi Mahis, o monge supremo dos seguidores do agá sorria confiante, esperando o começo da luta.
- Pois bem, Mestre Eoh Tao, o reinado do kaoísmo termina hoje...
- Não tenha tanta certeza, Mestre Mahis... Sinto que algo paira neste ambiente.
- Eu também sinto. É a covardia e o medo de seus alunos que empesteia o lugar.
- É algo bem maior que isso... – E enigmaticamente, sacou um colar de fitas coloridas e ficou em pose de meditação.
Quando estava para soar o grande sino, enquanto todos os contendores se preparavam, um berro ecoa paralisando tudo:
- Parem tudo! Sinto a presença de um “Finja” entre nós!!!
Um óóóó ecoou de praticamente todas as bocas
- Um Finja! - a maioria repetia estupefata
- O que acontecerá conosco agora?
- Ó céus, um Finja entre nós...

Até que alguém teve a coragem de dizer:
- Peraí, o que é um Finja, caraio?
Os dois mestres postaram-se no meio do círculo formado pelos lutadores:
- O “Finja” é um praticante do “Finjitsu”, a milenar arte marci-labial do fingimento, utilizada somente pelos maiores mestres. Precisam ser destros tanto no kaoísmo quanto nas artes do Agá para serem considerados um verdadeiro Finja... E é o único que pode derrotar os dois estilos sem fazer muita força.
O terror se apossou dos jovens corações de todos os alunos. Um vento forte, com um silvo amedrontador começou a percorrer, gelando espinhas e espíritos. De súbito, o mestre kaoísta começa uma cantinela solitário:
- Urueuauau, urueuauau, urueuauau...
As luzes se apagam e tudo cai em uma escuridão total, golpes secos são ouvidos no breu e o som de corpos sendo lançados de um lado para outro, violentamente. É tudo muito rápido. Em questão de minutos, as luzes voltam mostrando um quadro desolador: no meio de vários alunos caídos, o único que permanece de pé é Adalberto, o Pequeno Quati. Todos olham para ele com um misto de raiva e medo:
- Maldito Finja! Estava entre nós o tempo todo!
- Expulsem o indesejado... Mercenário, crápula!
- Peraí, eu nem...
- Basta – diz o mestre kaoísta, se levantando lentamente. Caminhou até a porta e ficou parado de costas, fitando o horizonte – O torneio não será realizado. Peço aos monges que se retirem agora, para que possamos tomar conta do pária.
Apesar dos protestos de Sodi Mahis e seus monges, ao simples olhar do Pequeno Quati, agora alçado ao posto de ameaça Finja, abaixaram as cabeças e saíram todos em um só bloco. Os kaoístas aprendizes os seguiram, não menos preocupados.

- Mestre, eu...
- Não precisa tentar se defender. Quando alguém é marcado como um Finja, nunca mais perde o estigma. Pode ser que você não seja o indivíduo, e tenho cá algo que me diz que você não é, mas não posso colocar o mosteiro em perigo. Arrume suas coisas. Sua permanência entre nós acabou.

Voltando ao presente, Adalberto, ex-Pequeno Quati, sabia agora o que teria que fazer. Qual a melhor defesa em caso de desconfiança? O ataque, lógico. Entraria enfurecido em casa, batendo portas e gritando, “cadê o salafrário” “eu mato!” “hoje eu como um cuzinho!” e coisas do gênero. A mulher ficaria tão assustada que nem se lembraria que ela é quem tava com a razão. E foi o que fez. Arrebentou a porta da frente, subiu as escadas gritando como um possesso. Segurava o riso quando arreganhou a porta do próprio quarto e viu a cena: Elise, sua esposa, em vestes de eva, de quatro sobre a cama, tendo atrás de si ninguém menos que Eoh Tao, seu antigo mestre no kaoísmo. Que nem enrubescido ficou, o sacana:
- Então, está usando a velha técnica da “defesa-atacante”, Pequeno Quati!
- Bom, eu... Peraí! Você tá comendo a minha mulher! Ah, mas eu te mato, fiodumaégua!
Adalberto voou no pescoço do outro quando começou a ouvir uma cantinela:
- Urueuauau, urueuauau, urueuauau... – O vento aumentou e as luzes se apagaram de repente...

*Quati: O quati ou coati (do tupi "nariz pontudo") é um mamífero da ordem Carnivora, família Procyonidae e género Nasua. O grupo está distribuído desde o Arizona ao norte da Argentina.A coloração, em geral, é cinzento-amarelada, porém muito variável, havendo indivíduos quase pretos e outros bastante avermelhados, focinho e pés pretos, cauda com 55 cm, com sete a oito anéis pretos. Mede de corpo 70 cm. Vive em bandos de oito a 10, é praticamente onívoro, e se adapta bem ao cativeiro. São animais diurnos e não aceitam muito bem a traição.
Kaoísmo: Fomar milenar e zen-bundista de aplicação do kaô. O verdadeiro kaoísta é o que consegue transformar a realidade com palavras (ou seja, leva todo mundo no gogó, que é um dos mais fortes golpes dessa arte marci-labial). Um mestre kaoísta nunca fica sem palavras, elas criam vida em sua boca e o ajudam a quebrar qualquer galho.

Nenhum comentário: